O MITO INCA


LOCALIZAÇÃO

    Lá para o ano 800(dC).    
   Só resta agora, do que devia ter sido a muito rica religião dos incas, a parte mais simples, aquela porção da mitologia que arraigou entre as gentes de baixo, aquela parte simplificada do mito e do rito que atravessou os rígidos controlos do culto oficial e aristocrático e chegou às massas, ou que foi feita para a sua distribuição entre os súbditos. A estratificação da sociedade inca foi tão grande que até a tradição religiosa ficou impregnada dessa total separação entre as duas castas: na de cima, junto com o filho do Sol e os seus escolhidos, estariam os teólogos, os cronistas dos grandes acontecimentos; em baixo ficavam todos os outros, mas sem acesso nenhum ao mundo superior. Com o fim do império, com a cristianização forçada pelo vencedor, a religião inca desapareceu, ao quebrar-se o culto oficial, só ficou o que tinha encharcado os humildes, o muito ou o pouco que ainda hoje se confunde.


As ruínas de Machu Picchu, a legendária "cidade perdida" dos povos incaicos. .
    INICIO    

    Um dia muito longínquo, o deus sem nome refletiu sobre o fato de se devia criar um mundo. Tinha a terra, a água e o fogo e isso lhe bastava para dar forma a qualquer coisa que desejasse formar. Assim o fez, criando três planos que compunham um único Universo. No de cima pôs os deuses, que tinham o aspecto brilhante do Sol e da Lua, das estrelas e dos cometas e de tudo quanto brilha no alto, sobre as nossas cabeças. Um pouco mais abaixo, mas ainda sobre o segundo mundo, estavam os deuses do raio, do relâmpago e o trovão, do arco-íris e de todas as coisas que não têm mais explicação senão a que os deuses queiram dar. Esse terço superior se chamou Janan Pacha. No segundo mundo, Cay Pacha, o deus criador pôs os humanos, os animais e as plantas, tudo o que é vivo, incluídos os espíritos. No mundo do terceiro plano, o mundo interior, Ucu Pacha, ficou o espaço fechado e reservado para os mortos. Os três planos estavam intercomunicados, mas eram umas vias muito especiais que davam acesso a uns e a outros. Ao de cima podia aceder o filho do Sol, o Inca ou príncipe, o Intip churin; do interior se podia aceder ao de cá, através de todos os condutos naturais que se abrem do interior para o exterior, condutos pelos quais brotam as águas da terra, cavernas, fendas e vulcões, pacarinas, que eram as vias primitivas de acesso por onde chegaram os seres que deram começo à humanidade; os germes que fizeram nascer os animais e as sementes que deram vida a todas as plantas que crescem no mundo de cá. O esquema deste universo inca seria, pois, o seguinte:
  -JANAN PACHA
  -Intip churin
  -CAY PACHA
  -Pacarina
  -UCU PACHA
  -O ciclo fecha-se com este fluxo para cima, que parte do Ucu Pacha, através de uma Pacarina, para que penetrem nela os homens Ayar e, no mundo de cá, do nascimento ao império inca, com os seus fundadores Manco Capac e Mama Ocllo à cabeça de uma humanidade que, com eles no cimo, pode dirigir-se para o mundo superior, para comunicar-se com os deuses dos quais eles, naturalmente, fazem parte.

    O DEUS DO SOL    

Militares e guerreiros formavam parte da nobreza Inca e, com frequência, os artistas davam um toque marcial às suas figuras de terracota..

    Como os chibchas com Bochica, os aztecas com Huitzilopchtl, os quinches com Hun-Apu-Vuch, os quechuas do império inca tinham o deus Sol no primeiro degrau do escalão celeste, com o nome sagrado e impronunciável de Inti, embora mais tarde fosse evoluindo para uma personalidade mais complexa e universal, que terminou por absorver a divindade sem nome da criação, para dar lugar a Ira Cocha, uma abreviatura do nome completo do deus Apu-Kon-Tiki-Uira-Cocha, que é, por antonomásia, a função total do seu poder omnímodo, dado que este nome é simplesmente a enumeração dos seus poderes (supremo ser da água, da terra e do fogo) sobre os três elementos em que se baseou a criação do Universo. Este novo e muito mais poderoso deus do Sol não estava sozinho no seu reino, pois estava a sua esposa -e irmã, como corresponde a um Inca- a Lua que o acompanhava em igualdade de rango na corte celestial, sob o nome de Quilha. O Sol era representado com a forma de um elipsóide de ouro no qual também podiam aparecer os raios como outro dos seus atributos de poder, e a Lua tinha a forma ritual de um disco de prata. O Sol, como criador, era adorado e reverenciado, mas também a ele se acudia à procura do seu favor e da sua ajuda, para resolver os problemas e aliviar as necessidades, dado que só ele podia fazer nascer as colheitas, curar a doença e dar a segurança que o ser humano anseia. Naturalmente, à deusa Quilha estava adscrito o fervor religioso das mulheres, e eram elas as que formavam o núcleo das suas fiéis seguidoras, dado que ninguém melhor do que a deusa Quilha podia compreender os seus desejos e temores e dar-lhes o amparo procurado.

    A CRIAÇÃO DE UIRA COCHA    

    Na nova lenda da criação do mundo por Uira Cocha, posterior ao primeiro mito da criação do Universo para os incas e ao qual substitui definitivamente, se dá ao deus todo-poderoso a faculdade de dirigir a construção de tudo o visível e invisível. Uira Cocha começa a sua obra nas margens do lago Titicaca, em Tiahuanaco, alçando na pedra as figuras dos dois primeiros seres humanos, dos primeiros homens e mulheres que vão ser os cimentos do seu trabalho. Uira Cocha vai situando estas estátuas e, à medida que lhes dá nome, se animam e tomam vida na escuridão do mundo primigênio, porque o deus ainda não se ocupou de dar luz à terra, unicamente iluminada pelo resplendor do Titi, um animal selvagem e ardente que vive no cima do mundo, seguramente o jaguar que se mistura com outros animais nas representações totêmicas dos incas e das culturas anteriores. Este mundo daqui ainda está em trevas porque Uira Cocha adia todo o seu labor de criação de um mundo completo, ao nascimento dos seres humanos que vão desfrutar dele. Satisfeito com os humanos, o deus prosseguiu o seu projeto, agora pondo no seu lugar o Sol, a Lua, as estrelas infinitas, até cobrir toda a abóbada celestial com a sua corte. Depois, Uira Cocha deixa atrás Tihuanaco e dirige-se para o norte, a caminho de Cacha, para, de lá, chamar ao seu lado as criaturas que ele acaba de dotar com vida própria. Ao partir de Tihuanaco, Uira Cocha tinha delegado as tarefas secundárias da criação nos seus dois ajudantes, Toca pu Uira Cocha e Imaymana Uira Cocha, que empreendem imediatamente as rotas do Este e do Oeste dos Andes, para -à sua passagem por tão longos caminhos- dar vida e nome a todas as plantas e a todos os animais que vão fazer aparecer sobre a face da terra, numa bela missão auxiliar e complementar da realizada antes pelo seu deus e senhor Uira Cocha, missão que terminam junto da margem do mar, para depois se perderem regiamente nas suas águas, uma vez cumprida a tarefa ordenada pelo deus criador principal do Universo dos incas.

    A REBELIÃO DOS HUMANOS    

Para servir ao seu senhor, os homens se tornam guerreiros e tomam prisioneiros a outros homens. O ofício da guerra, como emulação dos deuses mais terríveis, também se acha presente nas civilizações pré-colombinas..

    Como em quase todos os mitos mais elaborados da criação do homem, o desagradecimento é o único pagamento à bondade infinita que recebe o bom deus das suas criaturas. O Universo criado por Uira Cocha não podia ser menos, e não atende a sua chamada nenhum dos recém-nascidos. O deus encontra-se sozinho e entristecido no sítio Cacha, com a triste realidade da desobediência dos seus filhos. A evidência é irrefutável e a fórmula obrigatória para dar a entender quem manda sobre o mundo tem que vir em forma duma devastadora chuva de fogo, uma ação de castigo e de purificação, que serve tanto para recordar o poder do Ser Supremo como para levar os soberbos humanos ao bom caminho. A chuva de fogo que sai das entranhas da terra através dos vulcões de Cacha faz alastrar oportunamente o temor entre os estúpidos humanos, evitando-lhes de assim que se tornem merecedores de mais e maiores castigos à sua cegueira, pois os homens, ao ver que a sua insensata e torpe conduta os levou à destruição do seu maravilhoso ambiente, viram que podiam ter perdido com ela a recém-criada vida vegetal e animal, pondo mesmo em perigo a sua própria e recente existência, e agora estão totalmente arrependidos das suas faltas para com o benfeitor deus Uira Cocha e rezam para pedir-lhe clemência, implorando-lhe também o seu perdão sem altivez, com sentida humildade. O bom deus fica contente ao comprovar que se conseguiu aquele desejado regresso ao bom caminho das suas criaturas, e termina por dar-lhes a sua muito especial lição de modéstia, dado que puderam ver como o que receberam gratuitamente também pode perder-se pela simples vontade do deus criador. Já com os humanos agrupados ao seu redor, se dirige para um lugar que se chamará Cosco (o centro, a posterior Cuzco), onde estabelece o Inca Uira Cocha o seu primeiro reinado, mas dando a um ser humano, a um dos arrependidos homens, o comando da primeira cidade e o centro do primeiro império que existe sobre o planeta, e este primeiro chefe, o primeiro Inca diretamente designado pela divindade, é o legendário Allca Huisa, que será do mesmo modo o gerador da longa e poderosa estirpe dos incas.

    OUTROS PRECURSORES DO IMPÉRIO    

    Entre os grandes mitos está o de Manco Capac e a sua irmã /esposa Mama Ocllo, formando outra grande lenda sobre os precursores do império inca. Manco Capac e Mama Odeia são -neste mito- o primeiro casal de povoadores sagrados da terra, os primeiros incas que se estabelecem nela. Diz a lenda que surgiram ao mundo de cá pela pacarina privilegiada do lago Titicaca, em cuja ilha foram postos pela mão de Uira Cocha, de acordo com o que lhe tinha ordenado o seu pai, o deus do Sol. Os dois irmãos uniram-se em casamento, abrindo deste modo o ritual dos casamentos do Inca com a sua irmã Coya; Manco Capac se dedicou a fecundar a terra com um bastão de ouro que Uira Cocha lhe tinha dado e fazendo crescer as novas plantas, ia criando benefícios para a raça dos pobres mortais, para quem também ia dando forma aos rios e arroios, fazia brotar árvores e pastos e construía ricos quartos onde pudessem viver com decência: entretanto, Mama Oclla se dedicava a fazer a sua grande tarefa, dado que era ela quem ia ensinando às mulheres as artes e indústrias que lhes permitiram tirar todo o proveito possível às riquezas que o seu irmão produzia; assim, fazendo prodígios, o real casal chegou até um lugar onde, com o seu mágico bastão de ouro, apontou o centro do império, a futura cidade de Cuzco (Cosco, o centro). Mas há diferentes versões da chegada ao mundo de Manco Capac: uma delas, onde se mistura o relato de Manco Capac e Mama Oclla com o dos irmãos Ayar, faz com que Manco Capac apareça junto de outros três seres bem diferentes; já não são eles, os dois irmãos, os que vão estar em solitário à frente da criação do Império do Inca.

    APARECE PACHACAMAC    

Entre a vida e a morte, com o poder da serpente, engalanado com os seus atributos, um deus se faz visível nos tecidos de Tiahuanaco..

    Neste novo relato sobre a origem do império inca, se conta que Manco Capac está com os seus três irmãos, todos eles filhos do Sol: Pachacamac, uma divindade ancestral que foi incorporado posteriormente ao culto oficial inca, e que era adorado desde tempos antigos pelos povos da margem, Uira Cocha, e outro deus sem nome. O primeiro desses irmãos é, precisamente, Pachacamac, que ao sair ao nosso mundo subiu ao cimo mais alto, para lançar as quatro pedras aos quatro pontos cardeais, tomando, pois, posse de tudo o que a sua vista abarcava e as suas pedras alcançavam. Atrás dele surgiu outro irmão, que também ascendeu ao cimo por ordem do quarto e menor, do astuto e ambicioso Manco Capac, que aproveitou a sua confiança para o lançar ao vácuo e fazer-se com o poder, após ter anteriormente aprisionado Pachacamac numa caverna e visto como o terceiro, o bom Uira Cocha, preferia deixá-lo sozinho, abandonando os seus terríveis irmãos e odiando as suas manipulações por conseguir egoistamente o poder. Mas há outros relatos em que, precisamente, é o antigo deus Pachacamac a fazer de protagonista no cuidado dos humanos, como aquele que colheu o frade agostinho Calancha nos princípios do século XVII, no qual se narra a seguinte lenda: quando começou o mundo, não havia comida para o homem e a mulher que Pachacamac tinha criado; quando o homem morreu de fome, a mulher, que tinha ficado sozinha, saiu um dia desesperada para procurar as raízes das ervas que a pudessem manter com vida; chorava e gemia, queixando-se ao Sol de que a tinham feito nascer dia para depois deixá-la morrer de pobreza, consumida pelo fome. "Sozinha vivo no mundo, pobre e aflita, sem filhos que me sigam; Tu, Sol, nos criaste, porque é que nos consumes? Como é que é possível que se Tu és quem nos dá a luz, te apresentas tão malvado e mesquinho que me negas o sustento?"

    PACHACAMAC E O DEUS SOL    

    O Sol, movido pela compaixão, desceu à terra, pondo-se junto dela, consolou-a e perguntou a causa do seu pesar, fazendo como se nem sequer soubesse nada das suas boas razões para lamentar-se. Ela lhe contou então como tinha sido a sua pobre vida, a sua ansiedade e a sua pena; o Sol, cheio de dor, disse-lhe que arrancasse as raízes e, enquanto ela o fazia, ele furou-a com os seus raios e engendrou no seu ventre um filho. Nada mais fez o deus Sol, que pareceu contentar-se com aquela conversa com a única sobrevivente dos humanos; mas não foi assim, pois quatro dias mais tarde, para seu grande regozijo, a mulher pariu um maravilhoso homem, no qual se podia ver a sua divina origem; a boa mulher era feliz, completamente segura de que as suas penas tinham acabado e que o alimento já seria abundante. Mas não contava com a reação do seu criador, o insensível deus Pachacamac, que estava indignado porque era agora o Sol o que estava recebendo a adoração que só era devida a ele e porque tinha nascido um filho contra a sua vontade; tomou a semi-divina criatura nas suas mãos, sem ouvir os gritos angustiados da sua mãe, pedindo ajuda ao Sol, dado que o deus Sol era não só o pai daquele menino, mas o do mesmo Pachacamac; e se tomou esse menino, foi para acabar com ele, para matá-lo, trucidando depois o cadáver do inocente irmão em fragmentos minúsculos. Mas Pachacamac, para que não se pudesse contrapor a bondade do seu pai o Sol perante a sua, plantou os dentes do menino assassinado e nasceu o milho, cujos grãos parecem dentes; e plantou os ossos e as costelas do menino e nasceu a yuca, cuja raiz é comprida e branca como os ossos; e criou também os outros frutos desta terra que são raízes. Da pele da criatura saiu o pacay, o pepino e outros frutos e árvores, e assim ninguém conheceu a fome nem o lamento pela necessidade e deviam a sua subsistência e abundância ao deus Pachacamac; e a sua sorte continuou sendo tão boa que a terra continuou sendo fértil e os descendentes dos Yungas nunca conheceram os extremos da fome.

    O CULTO DIVINO    

O jaguar de ouro, o primeiro animal sagrado do panteão americano, como objeto ativo do culto dos incas..

    Se grandiosa foi a aparição do primeiro Inca e a primeira Coya, grandioso foi também o seu culto. Eles eram adorados na multidão de templos solares de todos os cantos do Império, num lugar do santoral muito próximo do grande deus Sol. De todas as localizações religiosas dedicados a este grande deus inca, quer se tratasse de templos, oratórios, pirâmides ou lugares sagrados naturais, o que os precedia, por rango e pela sua grandeza, era o grande santuário de Inti-Huasi de Cuzco, rico templo chamado também Coricancha, ou sala de ouro, dado que as suas paredes estavam recobertas por lâminas desse metal, para maior glória do Inca e dos deuses de quem ele descendia. A imagem central do Coricancha era o grande disco solar, a imagem ortodoxa e ritual do deus do Sol, e ao seu redor estavam as outras capelas das divindades menores do céu. Após Coricancha, pelo seu esplendor e importância se situa o templo dedicado pelos chinchas a Pachacamac em Lurin, perto de Lima. Deve apontar-se que a cultura Chincha tinha em Chincha Camac o seu ser Supremo, dado que, embora adorassem o deus Pachacamac (mais por temor do que por respeito ou amor), e a ele dedicavam templos e huacas como uma ação de agradecimento pelo seu trabalho criador e oferendas feitas por elas ou selecionadas entre os seus frutos, por ser o salvador dos seus antepassados que livrou da fome inicial, também estavam cientes de que este poderoso e temível deus, pela sua especial personalidade, não podia ser aquele a quem eles acudissem à procura de soluções às suas diferenças e pesares. No grande templo de Lurin, santuário para a adoração do deus sem pele nem ossos, como era descrito Pachacamac pelos seus fiéis, os incas -após assimilar este deus e o seu culto ao do Sol- realizaram obras de embelezamento, até fazê-lo quase tão belo como Coricancha, cobrindo também de ouro e prata a capela central, a do deus Pachacamac, à maneira do anteriormente feito com a totalidade do grande templo solar de Cuzco.

    AS ACLAS, VIRGENS DO SOL    

    Para proporcionar o melhor culto possível ao deus Sol, além das suas diversas classes de sacerdotes, os incas tinham instituído uma importante instituição de virgens dedicadas ao seu serviço, conhecida como Intip Chinán, na qual entravam as meninas escolhidas na sua infância (aos oito anos) para se converterem em acllas após um estrito noviciado que cobria os primeiros anos da sua estadia conventual, sob a direção de uma superiora, Mamo Cuna, educadora, vigilante e examinadora das jovens submetidas à sua tutela. Diga-se que também Mamacunas (as escolhidas) era o nome do templo das Aclla. Mas esta profissão religiosa não era só uma chamada ou uma obrigação para acudir forçosamente ao serviço da religião, senão que se tratava de uma educação seletiva e esmerada para as jovens das classes superiores, dado que, uma vez chegadas à idade puberdade, entre os treze e os quinze anos de idade, passavam a ser "apresentadas em sociedade", para serem as potenciais prometidas de senhores da nobreza, dado que o período de serviço no Inti Chinán como aclla era também a garantia da qualidade da sua linhagem e o avalo da melhor educação e, evidentemente, a melhor prova exibível publicamente da sua incontestável virgindade, dado que não guardar a obrigada castidade e, sobretudo, ser surpreendida com um homem significava, para a vestal em exercício, a sua inapelável condena a morte, a uma morte cruelmente exemplar, deixando-a morrer de inanição, para que não fosse a mão do ser humano que matasse as sacerdotisas, senão o abandono. Este castigo, muito similar ao aplicado às vestais romanas consideradas impuras, era também tão duro como todos os que se aplicavam às virgens escolhidas para o serviço dos deuses, em todas as outras latitudes com as vestais infiéis, como uma extensão do máximo castigo que sempre foi aplicado exclusivamente às mulheres infiéis na religião ou na vida matrimonial, sem que nunca se tenha aplicado um norma como contrapartida similar para os muito menos castos homens de religião, seja qual for a doutrina considerada. Diga-se também que parece que, se se chegasse a produzir uma gravidez de uma das aclas, sempre que não houvesse provas contra a exigida adesão à norma estrita da virgindade requerida, se considerava que tal gravidez tinha sido realizado pela explícita vontade e pessoal ação do deus Sol e, automaticamente, o filho que tivesse a vestal era considerado privilegiado filho do deus solar e, como tal, recebia um tratamento de favor para o resto das suas dias.

    DIVINDADES DE SEGUNDA LINHA    

Muitos adereços dos povos da América Central estavam realizados com metais preciosos, especialmente com ouro, pelo qual constituíram um tesouro tanto material como mítico. E é que muitas figuras representavam deidades e espíritos denominados de "segunda linha"..

    À parte do grande Uira Cocha e a sua corte terreal de Amauta, ou sábios e primeiros sacerdotes e administradores, o segundo cordão de clérigos, a nobreza militar e os Ayllus ou grêmios, regidos até no seu mais mínimo movimento pela lei do Inca, o povo corrente tinha o seu panteão com outros deuses menores, aos quais -talvez- resultava mais simples e próximo dirigir-se à procura de favores e soluções. A estrela encaracolada ou da manhã acompanhava o Sol, como Illapa, deus do trovão, como a imagem da estrela de ouro, a da tarde, Chasca, fazia a sua guarda junto da Lua, e Chuychú, o belo arco-íris estava por baixo de ambos os grandes deuses. As constelações da copa da coca (Coa Manca) era uma constelação que cuidava das ervas mágicas, como a constelação da copa de milho (Sara Manca) o fazia com os alimentos vegetais, e a do jaguar (Chinchay) se encarregava dos felinos. O Huasicamayo era o deus tutelar do lar, enquanto o Cchajra-Camayoc se esforçava por evitar que os ladrões entrassem nessa mesma casa, e os Auquis assumiam a vigilância de cada povoado. Havia também um deus das tempestades e outro deus do granizo; após Pacha-Mama, a deusa da Terra, estavam Apucatequil e Piguero, como deuses tutelares dos gêmeos; a serpente Urcaguay era a divindade do que estava debaixo de terra, enquanto o ávido Supai reinava no mundo dos mortos e não parava de reclamar mais e mais vítimas para a sua causa. Também estava o deus Kom, um irmão de Pachacamac expulso por este e que levou com ele, ao ser forçado a sair, a chuva e deixou a franja costeira do Peru seca para sempre; outros irmãos, Temenduare e Arikuté, deram origem ao dilúvio com as suas querelas.

    AS PLANÍCIES DE NAZCA    

A célebre huaca ou sepulcro da Lua. Estava construída conforme a técnica do adobe e tinha uma base de 87 metros por uma altura de 21 metros..

    No vale de Palpa encontra-se uma gigantesca e quase invisível construção, realizada com pedras de pequeno tamanho, marcando no seu solo uma série de figuras que parece impossível que tenham sido realizadas sem que se pudesse observar e dirigir a sua construção a partir de algum lugar elevado. Esta grande construção, ou melhor dito, este desenho monumental, pertence à cultura de Nazca, que já os espanhóis conheceram em parte, apesar de terem sido um dos muitos povos absorvidos pela expansão do império inca. A moderna lenda quis ver em Palpa todas as classes de artifícios mágicos e até extra terrestres, mas este vale tinha outra utilidade muito mais precisa e interessante: a observação astronômica. De uma praça central partem 23 retas, na sua maior parte de uns 182 metros de longitude, outras da metade ou quarta parte dessa longitude e outras de 26 metros, o que demonstra que se trata duma construção baseada numa ordem geométrica precisa. As linhas marcam pontos que guardam relação com o solstício e o equinócio, e deviam ter servido de instrumento de medida para estabelecer o calendário solar. Quanto aos verdadeiros mitos de Nazca, não se sabe demasiado, à parte da existência do felino manchado, talvez personificação de Pachacamac, quando aparece rodeado por serpentes, pelo puma ou gato da água ou dos lagos e pelo gato-demônio; também aparece a figura do reduzido zig-zag, com uma serpente no seu lombo, a do homem-centopéia, a aranha de oito patas e as mais locais (Nazca era uma povoação de pescadores) da baleia, a terrível divindade chamada Boto, uma espécie muito particular de deus de todos os terrores; mas não há que esquecer o deus do Mar, com corpo de peixe, cara coberta de ângulos e um cetro ou uma cabeça cortada na sua mão, e a do Poderoso Senhor do Mar, que costuma representar-se em cenários de peixes e pescadores, mais como a figura de um ser legendário da sua história do que como a de um deus da mitologia nazca.

    A CULTURA MOCHICA    

    Pouco nos resta dos mitos em que os Mochica ou Moche baseavam a sua religião, pouco resta dessa cultura moche que viveu na zona nortenha da costa do Peru. Mas ficam ainda em pé as suas monumentais pirâmides de adobe de Vicus, embora o tempo tivesse ido erosionando implacavelmente a sua fraca estrutura, tanto que foi fazendo com que se perdesse a sua riqueza coletiva e o seu legado legendário. Devia ter sido um povo costeiro que, como sucessor de muitas culturas e muito diversas, foi agrupando os diversos retalhos mitológicos até formar um grupo de divindades heterogêneas, até criar um conjunto panteístico peculiar ao cuidado da classe sacerdotal e com o jaguar à cabeça das diversas divindades locais, quase todas totêmicas, como o demônio-caranguejo ou o demônio-serpente; os seus animais locais, presididos pelo martim pescador e as curiosas cerâmicas sexuais nas quais se supõe que se quer dar uma lição de moral, unindo a figura do prazer à da morte. Os seus dois grandes templos, a Huaca do Sol e a Huaca da Lua, são duas obras impressionantes e sem igual. A Huaca do Sol, com cinco grandes terraças, a maior de oitenta metros de longitude, sobre umas bases de 228 de comprimento por 136 de largura e a plataforma de 18 metros de altura, está coroada por uma pirâmide de 23 metros de altura, que tem uma base quadrangular de 103 metros de lado. A Huaca da Lua tem uma base de 87 metros e uma altura de 21, e na sua plataforma superior se levantavam uma série de salas decoradas com figuras humanas. As duas huacas estão construídas de adobe, sobre a argilífera planície, calculando-se que só para a construção da Huaca do Sol se empregaram cento e trinta milhões de peças, sendo, pois, as duas huacas maiores como montanhas feitas pelo homem para a glória das suas divindades e para aproximar-se ainda mais dos segredos do firmamento.

    O POVO CHIMU    

Figura representando a uma mulher, provavelmente, a de uma sacerdotisa. Estava obrigada a guardar castidade e, de não fazê-lo podia ter como castigado a morte por fome..

    Quando o Inca Pachacutec conquistou o território da confederação de Chimú, a meados do século XV, pouco antes da chegada dos espanhóis à América, terminou por assimilar as suas crenças, assim como os seus domínios. O Inca estendeu o seu poder a este senhorio situado das terras dos Moche a Paramonga no sul, ao longo da costa do Peru, império governado pela grande cidade de Chan-Chan. Chimú tinha o deus Kom como seu mediador entre a terra e o céu, onde reinava o deus Sol, Chatay, ajudado pela Lua, Quillapa Huillac, que muitos consideravam mais poderosa do que o Sol, dado que podia reinar na noite e no dia era até capaz de cobrir o Sol e fazê-lo desaparecer do céu nos eclipses. Ao redor destes deuses maiores estavam os deuses celestiais, como os do relâmpago e o trovão, a estrela da manhã (Achachi Ururi) e a estrela da tarde (Apadri Ururi), o demônio que vive na estrela central da constelação de Órion, precisamente a que marca o cinto do caçador e que está acompanhada por outras duas estrelas (Patas), que são as enviadas pela deusa Lua para vigiá-lo de perto no seu deserto e evitar, com o seu perpétuo presidir celestial, que continue fazendo o mal. Também os chimú tinham no seu panteão divindades zoomórficas, como os habituais felinos machados que aparecem na maior parte das culturas absorvidas pelos incas. Para os chimú, o céu era simplesmente uma extensão da terra, e a vida que esperava após a morte era somente a prolongação da primeira terrena. A sua prática religiosa, que começou a ser tão pacífica como tranqüila, se foi movendo no mesmo sentido de sacrifício que as da envolvente, para terminar sendo sangüinária e cruenta, metida numa complicada trama aristocratizante de castas sacerdotais, militares, comerciantes e camponeses, ao estilo da inca, que se movia num fetichismo mágico, num mito cerimonial escuro e arcano, dirigido pela casta sacerdotal para seu benefício político.

    A LENDA DE OLLANTAY E COYLLUR    

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    O chefe Ollantay, o valente guerreiro e Titã dos Andes, era o herói legendário de Tauantinsuyo, o chefe militar apaixonado por uma bela princesa, a inalcançável Coyllur, filha do Inca Tupac Yupanqui. A princesa Coyllur (Estrela) também se tinha apaixonado pelo valor e pela beleza de Ollantay, mas sabia que este amor era um romance proibido pela estrita lei do Inca, dado que nunca uma donzela de sangue real, uma filha do Inca, e um Andi, um homem do povo, podiam chegar a celebrar um casamento tão desigual, visto que tal ato seria considerado sacrilégio pelo Uilac-Huma, o sumo sacerdote, e lhes acarretaria o castigo máximo. De maneira que Coyllur foi recluída no templo das Aclla, em Mamacunas, enquanto o ofendido general Ollantay levantou-se em rebeldia contra a crueldade do poder político e religioso e deu início a uma luta épica e desigual, enfrentando o herói o próprio Inca e conseguindo reunir todas as virtudes totêmicas sob a sua espada. Assim Ollantay se move com a elasticidade da serpente, atua com a astúcia do raposo, chega até onde só o faz o condor, é tão corajoso como o jaguar e tão duro como as montanhas dos Andes. O guerreiro e a princesa vêem-se recompensados com o nascimento de um filho, de Ima Sumac, o muito belo, e já termina o drama de amores para dar início ao final feliz do triunfo dos humanos sobre o poder incontestável dos incas. Com a luta do pai Ollantay e a entrega apaixonada pela princesa Coyllur, o povo que vive afastado do mundo fechado do Inca, pode aspirar a ser parte da história da qual só foi súdito e cúmplice, mas já não restava muito tempo para que se pudesse transmitir o tesouro da cultura inca do palácio às ruas.


Fim