Lá para o ano 1205(dC).  
   O muito simples e estrito ideário germânico aparece claramente desenhado na trama linear e quase infantil da canção dos nibelungos, o relato das virtudes e valores legendários dos heróis burgondos, uma das diferentes famílias vândalas que desapareceriam na história após a queda de Roma, aniquilados pelas hostes de Átila. Após ter permanecido esquecido durante séculos, o manuscrito foi achado na época da Ilustração, em Zurique, em 1755, e o seu descobrimento propiciou a recuperação do espírito germânico no momento em que se queria começar a forjar a recuperação dos diferentes valores nacionais em toda a Europa. Livre de qualquer influência das mitologias greco-romanas, mas já marcado pelo selo do monoteísmo cristão, o poema abandona qualquer possível intervenção celestial.


Worms, a capital do reino de Gunther, era a sua meta; lá teriam que demonstrar Sigfrid a sua força e destreza com as armas, o único que importava num nobre..
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    O príncipe Sigfrid de Niederland, das terras baixas, é o protagonista ausente de "A canção dos nibelungos", belo donzel e nobre guerreiro de sangue real, o involuntário causador do dramático desfecho da história legendária, a razão exibida numa poética explicação dada à desaparição histórica da nação burgunda perante o huno Átila. A princesa Crimilda dos burgondos, a dama de Worms, é o objeto do seu amor, a donzela sonhada, a bela virgem pela qual se apaixona perdidamente Sigfrid pelas referências que lhe chegaram da sua inigualável beleza. Os dois jovens apaixonar-se-ão mutuamente e o seu casamento será em breve um fato. Brunilda é uma estranha rainha da Islândia, tão bela como brutal, que oferece a sua mão a quem possa vencê-la num combate mortal, mas que cairá irremissivelmente rendida perante Gunther, o apaixonado irmão de Crimilda, mas só pela astuta e mágica intervenção de Sigfrid, e esse insólito romance também se saldará com o casamento desejado, para satisfação de Gunther. A história teria acabado felizmente aí, mas as considerações de uma honra arbitrária e, mais do que nada, a intromissão das nada desejáveis vontades femininas no mundo brutal e inflexível dos homens germânicos, farão com que todo um povo seja imolado para satisfação de uma vingança sangüinária que tem a sua desculpa e a primeira origem num ato tão trivial como o protocolo real pelo qual se discute para estabelecer a ordem oficial de entrada na igreja das duas damas centrais da nossa história, as cunhadas rivais Crimilda e Brunilda, complicado depois com a morte do bom Sigfrid. Junto deles está, num posto destacado, o indefinível personagem de Hagen, braço armado de Gunther, que faz alternativamente de herói e de vilão na história, sendo primeiro o executor cobarde de Sigfrid e, mais tarde, o heróico paladino do rei Gunther quando chega a hora da luta final, ao pôr-se em andamento a máquina sangrenta da traição final, o último ato do poema, com a execução do plano imisericorde e inobre da vingativa Crimilda.

    COMEÇA A HISTÓRIA DE SIGFRID    

Sigfrid parte em busca da sua amada Crimilda; como é lógico num cavaleiro, não a conhece, só persegue um sonho..

    O poema começa com a descrição do belo príncipe de Niederland. A sua virtude é a mais digna de um herói germânico: reside pois na potência do seu braço e na sua incansável bravura cega, somada à permanente capacidade juvenil de matar quem quiser ser seu rival, quer seja numa batalha campal ou num amistoso torneio entre cavalheiros. Matar em combate é o melhor cartão de apresentação de alguém que queira confirmar a sua nobre origem e a sua limpa trajetória no mundo das tribos germânicas, tão pouco versadas em letras mas tão eternamente dispostas a dar ou receber a morte. Porque a morte pelas mãos dos inimigos é o melhor caminho dos povos germânicos para chegar ao paraíso celestial, à mais alta glória de Deus, que até há só uns poucos séculos ainda se chamava Valacha. Agora, em plena vigência da cristianização, esqueceu-se o papel desempenhado pela mitologia dos deuses batalhadores porque só se admite a presença do deus dos cristãos, e a sua intervenção fica reservada para o combate contra os infiéis ou quando é necessário recorrer à sua arbitragem, naqueles julgamentos de Deus, nos quais -com certeza- o tribunal é uma arena e a morte do rival é a melhor sentença possível, porque vai confirmada pelo invisível selo de Deus. Não resta, pois, sítio para o recurso a Thor, Odin ou as Valquírias, mas mantém-se a idéia essencial da santificação dos homens pelo exercício constante e, até as suas últimas conseqüências, das armas. Mas agora Sigfrid não é movido na sua aventura pela procura dum confronto contra um par da cavalaria, mas pela relatada beleza da bela Crimilda, uma princesa de Burgundia, filha do falecido rei Dankrat e da rainha Uta, irmã de três reis, Gunther, Gernot e Giselher.

    SIGFRID CHEGA A WORMS    

    Sigfrid, filho de Sigmond e Siglind, reis de Niederland, era um príncipe bonito e corajoso; um jovem desejado pelas mais nobres virgens da corte de Santem, mas ele não podia nem sequer conceder a sua atenção àquelas donzelas, porque o seu inquieto coração estava em Worms, onde morava a doce Crimilda. Os reis de Niederland ficaram preocupados com a revelação do seu filho, dado que os burgondos eram gente temida e, entre eles, destacava o terrível barão Hagen, um adversário quase impossível de vencer. Mas Sigfrid, uma vez que comunicou a sua irrevogável decisão, preparou a sua partida para Worms, com a simples escolta duma dúzia de homens. Com eles cavalgou para o seu destino, dirigindo-se à corte do rei Gunther sem mais demoras. O rei recebeu-o, uma vez que foi informado da identidade do seu visitante, para conhecer a razão da sua viagem, e o intrépido Sigfrid, sem mais preâmbulos, respondeu que queria provar a afamada destreza do rei dos burgondos com as armas, certo como estava de vencê-lo e conseguir o seu reino e as suas gentes. Os nobres quiseram lançar-se sobre o ousado Sigfrid, mas o tenso ambiente em breve se acalmou e Sigfrid, o bravo e insolente cavalheiro das terras baixas, foi admitido como hóspede da corte de Worms, embora a sua estadia se estendesse e ele não chegasse a ver, nem que fosse na distância, a sua amada Crimilda. Tudo mudou quando se soube em Worms da chegada duma tropa de dinamarqueses e saxões que vinham contra Worms. Informado Sigfrid, ofereceu-se a Gunther para estar ao seu lado nesse confronto que se previa duro e perigoso, aconselhando-lhe que desse uma vigorosa resposta à afronta dos dinamarqueses e saxões e pedindo ao seu rei Gunther a honra e a responsabilidade de poder bem servi-lo comandando uma tropa de mil guerreiros para defender Burgondia. Com eles saiu para castigar os saxões, matando dúzia após dúzia de inimigos, até capturar o rei Ludeger. Os dinamarqueses, ao conhecerem a rápida vitória de Sigfrid, acudiram na ajuda dos seus aliados saxões, mas Sigfrid também apresentou combate e venceu-os com facilidade, rendendo o seu chefe, o rei Ludegast. Terminada a batalha, os dois submetidos soberanos foram levados para a corte de Worms, como prisioneiros de guerra, para maior honra do seu senhor Gunther de Burgondia.

    DE RIVAL A LEAL AMIGO    

Depois de desafiar ao rei, Sigfrid se converteu no seu mais leal servidor e mais fiel amigo, sem ter chegado a empunhar as armas..

    A notícia da vitória não só alegrou o rei Gunther e os seus súditos; a princesa Crimilda também ficou emocionada ao conhecer a façanha de Sigfrid "o forte", de Sigfrid "o demônio", como lhe chamavam os poucos que tinham combatido perto dele e tiveram a sorte de sobreviver. Agora Sigfrid já era o leal amigo e podia ser apresentado à princesa Crimilda, pois o rei, seu irmão, não ignorava o seu amor por ela. Ao conhecerem-se, ambos puderam dar-se conta imediatamente de que o amor vivido por cada um deles era um sentimento mútuo. Só faltava ao valoroso príncipe Sigfrid passar por outra nova prova de armas, a prova de rigor que lhe permitisse aceder à mão da princesa que acabava de conhecer, e esta oportunidade sonhada não demorou demasiado em apresentar-se. A ocasião de ganhar o amor da adorada Crimilda chamava-se Brunilda e era uma rainha tão bela como violenta, nada menos do que a indômita soberana do longínquo reino da Islândia. O rei Gunther amava-a à distância e necessitava de alcançar o seu coração. Não era tarefa simples, pois a singular rainha exigia ser vencida em combate para conceder o seu coração, e infelizmente era tão forte como cruel, dado que tinham sido muitos os nobres que tinham pago com a sua cabeça a derrota perante Brunilda. O rei Gunther era um temerário lutador, mas necessitava da ajuda daqueles fiéis voluntários que quiseram arriscar-se com ele na sua tentativa. O bom Sigfrid, naturalmente, foi o primeiro cavalheiro em oferecer-se incondicionalmente ao seu serviço, reclamando como única compensação, claro, a Crimilda em casamento se a expedição resultasse favorável para os desejos do seu rei e senhor. Para completar a breve força de acompanhamento, solicitou a presença dos irmãos Hagen e Dankwart. Também Sigfrid tomou algo que mais ninguém conhecia, salvo ele: um manto mágico arrebatado ao anão Alberic, do país dos nibelungos, com o qual podia tornar-se invisível à vontade e ficar a coberto de qualquer arma, por muito afiada que estivesse e por robusto que fosse o braço que a empunhasse. Sigfrid era invencível, mas nesta ocasião não tratava de conquistar prestígio para si, senão a possibilidade de ganhar o privilégio de ser esposo de Crimilda.

    A VITÓRIA SOBRE BRUNILDA    

O rei Gunther, apaixonado perdidamente por Brunilda, e a sua breve escolta foram a Islândia, para apresentar-se e poder fazer sua rainha desafiada..

    Assim que a tropa se preparou, os quatro valentes partiram de barco para a Islândia e, após doze dias de travessia marinha, chegaram às suas costas, divisando maravilhados a altiva fortaleza de Isenstein. Foram imediatamente recebidos pela rainha Brunilda, que devia estar ansiosamente à espera de emoções violentas. Assim que chegaram diante dela, os recém-chegados, pela boca de Sigfrid, anunciaram a intenção do rei Gunther de ganhar a mão de Brunilda, a mulher com fama de ser mais forte do que doze homens. Aceitou feliz Brunilda o desafio esperado, recordando a todos os presentes que a falha de Gunther em qualquer uma das provas significaria automaticamente a sua morte, pois nunca se dava quartel ao vencido, e propôs-lhe competir primeiro num combate à lança e, se o superava, depois no lançamento duma pedra tão longe como se pudesse, para mais tarde ter que alcançá-la de um único salto. Aceites que foram as duas absurdas provas, Sigfrid chamou num à parte a Gunther para informar-lhe de que, graças à posse da capa do anão Alberic, ele converter-se-ia no invisível adversário de Brunilda, enquanto o rei atuaria fingindo ser ele o único combatente de Brunilda. Assim se fez e foi Sigfrid quem derrotou com facilidade a rainha Brunilda com a lança, após um combate no qual ela via admirada como a força de Gunther se multiplicava até desarmá-la. Mais tarde, Sigfrid arrastou a pedra pelo ar, para depois transportar Gunther da mesma forma ao longo do mesmo trecho. Cumprido o trâmite, Gunther, suposto vencedor, fez saber à sua amada e vencida Brunilda que agora já era a sua prometida em toda a regra e, portanto, ela devia cumprir o pactado, seguindo-o de bom grado na sua viagem de regresso ao país dos burgondos. A derrotada rainha, entristecida pela sua obrigada partida mas aceitando o que julgava justo resultado, quis despedir-se dos seus súbditos e pediu o tempo necessário para fazê-lo em boa forma e preparar a sua partida definitiva para o país do que seria o seu esposo, e no qual ela continuaria mantendo o seu real rango.

    A PREPARAÇÃO DO CASAMENTO    

Conquistada Brunilda, o caminho ficava livre para o casamento de Crimilda e Sigfrid..

    Vencida Brunilda e outorgada por Gunther a sua irmã Crimilda em casamento, Sigfrid foi ao país dos nibelungos para preparar um exército que escoltasse o seu rei e para retirar do fabuloso tesouro dos nibelungos o seu próprio dote. Só teve que vencer a oposição do guarda armado, mas isso era simplesmente um exercício de práticas para o jovem, movido pela felicidade do seu próximo casamento. Ninguém mais se opôs, nem sequer o anão Alberic, já despojado da sua mágica capa e rendido de antemão perante o impulso do seu antigo vencedor. Escolheu, pois, Sigfrid as mais ricas jóias do tesouro dos nibelungos e exigiu a escolta dos melhores mil homens, com os quais formou a majestosa coluna que devia passar pela Islândia para acompanhar o seu senhor e Brunilda, para mais tarde chegar triunfal a Burgondia, de acordo com a dupla cerimônia que teria de realizar-se. Deixando os mil nibelungos na Islândia, Sigfrid adiantou-se para ser o primeiro que a dar a notícia da vitória de Gunther em Worms. A notícia foi acolhida com júbilo e todo o país se apressou nos preparativos do casamento real. Toda a corte se lançou às ruas da capital para receber o seu rei e a que seria em breve sua rainha. Sigfrid, na grande festa de recepção, recebeu oficialmente a mão da sua amada. No mesmo dia celebrou-se o duplo casamento e tudo parecia ser perfeito, salvo um olhar triste de Brunilda, que sofria vendo a princesa Crimilda acompanhada pelo vassalo Sigfrid. Gunther tentou tranqüilizar o seu pesar, advertindo-a de que se tratava de um príncipe de Niederland, amigo fiel como nenhum outro. A resposta irritou a brutal Brunilda, que abandonou a sala e dirigiu-se airada para o seu aposento seguida pelo atônito Gunther. Lá, na solidão da câmara nupcial, exigiu uma explicação a esse estranho -para ela- acasalamento. O rei quis demonstrar o seu poder sobre a esposa, mas Brunilda não se deixou vencer e bateu no seu marido deixando-o depois pendurado de um gancho da parede. Sigfrid, que tinha presenciado a primeira parte do surpreendente confronto entre a recém-casada e o seu marido, embrulhou-se na capa de Alberic a tempo de seguir o real casal à intimidade dos seus quartos, tentando averiguar a razão daquela súbita cólera da inexplicável Brunilda. À vista do que sucedia, apagou as tochas e, atuando com rapidez na escuridão, livrou Gunther da sua humilhação, para lançar-se imediatamente sobre a fera Grunilda e arrear-lhe uma inesquecível tarefa. Sem saber bem porque é que o fazia, talvez para descarregar a sua ira perante semelhante desconsideração da rainha, Sigfrid aproveitou a situação para lhe arrebatar um anel da sua mão e o elegante cinto que cingia a sua cintura. Os golpes abrandaram o gênio da rainha e até a deveriam ter feito sentir-se no seu elemento, ao passo que esta, ignorante de novo da invisível presença de Sigfrid, pedia feliz e humilde perdão ao seu marido, ao mesmo tempo que lhe prometia eterna submissão à sua real vontade.

    QUESTÃO DE PROTOCOLO    

A questão do protocolo na corte de Gunther foi a espoleta que disparou a ira de Brunilda. Ela queria que o bravo Sigfrid rendesse pública vassalagem ao seu marido..

    Sigfrid e a sua esposa Crimilda partiram para o reino de Niederland, onde ocuparia o trono que lhe transmitia o seu pai o rei Sigmund e também aquele outro ganho pela sua mão, o dos nibelungos. Sigfrid reinaria com retidão e prudência, e a sua esposa, a rainha Crimilda dava-lhe um filho, ao qual se impôs o nome de Gunther, em recordação do nobre rei dos burgondos, ao mesmo tempo que lá, Brunilda tinha também um menino, ao que foi dado o nome de Sigfrid, em homenagem a este herói. Mas, apesar das aparências, não tinha ficado resolvido o assunto da casamento entre vassalo e princesa. Foi por esta razão que Brunilda voltou a insistir em que Sigfrid rendesse vassalagem ao seu senhor e a melhor maneira seria fazê-lo vir à corte de Worms, com a desculpa de um torneio entre cavalheiros. Em má hora aceitou o casal o convite de Gunther, pois a insistente Brunilda, tão depressa teve a sua cunhada diante dela, fez-lhe saber que Sigfrid era simplesmente o vassalo do seu marido, pois assim o tinha ela ouvido da boca de Gunther ao ser vencida na Islândia. Crimilda negou a vassalagem e gabou-se de que na cerimônia religiosa do dia seguinte estaria situada diante da sua cunhada. E foi certo: Crimilda entrou diante de Brunilda na catedral de Worms, humilhando-a perante toda a corte. À saída dos ofícios, Brunilda exigiu pública retificação, mas Crimilda limitou-se a mostrar aquele anel e aquele alfinete que Sigfrid tivesse arrebatado na luta com a irada dama, indicando-lhe que ela, Brunilda, era a derrotada pelo seu marido. Mais colérica do que nunca, Brunilda mandou chamar o rei Gunther para pedir explicação, pois ela julgava firmemente que ele era o seu duplo vencedor. Gunther, ao conhecer a razão do alvoroço, pediu a presença de Sigfrid, para perguntar-lhe se era certo que se tinha gabado da sua vitória. Sigfrid estava já preparado para jurar perante o seu senhor e amigo que nunca ele tinha presumido de tais atos e aquilo bastou para que Gunther interrompesse o juramento, recuperada a confiança em quem sempre tinha demonstrado a sua fidelidade, sendo culpada de tudo o sucedido a sua irmã Crimilda e a sua vã arrogância.

    SIGFRID PAGA COM A SUA VIDA    

E Sigfrid, naquela fingida caçada, pagou com a sua vida a conta aberta pela estúpida etiqueta cortesã..

    Gunther e Sigfrid continuavam a ser inseparáveis, mas Brunilda e Crimilda estavam definitivamente enfrentadas. Hagen aproximou-se da sua senhora, para conhecer a causa do seu padecimento e esta fez-lhe saber que necessitava de satisfazer a sua sede de vingança com o sangue de Sigfrid. Então Hagen prometeu dar fim a essa odiada vida com a sua própria mão, mas o rei e a sua corte -informados da promessa de Hagen- quiseram culpar Crimilda e, sobretudo, evitar a possível resposta violenta do invencível Sigfrid. Então todos juraram manter em segredo a decisão de matá-lo, tramando um falso ataque estrangeiro a Gunther, para fazer com que o herói acudisse junto do seu amigo e assim poder matá-lo à traição. Em efeito, Sigfrid voou, mais do que cavalgou, para Worms, enquanto Hagen se aproximava da solitária rainha Crimilda, com o pretexto de ser porta-voz da petição de perdão e da graça da sua amizade por parte da arrependida Brunilda. Ao mesmo tempo, fazendo ver que queria guardar Sigfrid do mal de uma arma inimiga, conseguiu que a ingênua Crimilda lhe revelasse o ponto débil do seu marido, o único lugar do seu corpo não banhado no sangue do dragão que o tinha feito invulnerável, no centro das suas costas. Conhecendo Hagen o ponto exato, a única coisa que teve que fazer foi convencê-lo de que o acompanhasse numa pretendida caçada para, à traição, matá-lo com uma lança que cravou entre os seus omoplatas. Depois, o cadáver foi levado a Worms para deixá-lo à porta de Crimilda, como um insulto acrescentado à sua morte. Ao ver que não há mais ferida do que a que lhe atravessou a zona que ela revelou a Hagen, Crimilda sabe que Sigfrid foi assassinado e também quem foi o que causou a sua morte pelas costas; para prová-lo, a viúva faz desfilar todos os nobres da corte do seu irmão diante do féretro de Sigfrid. Quando chegou a vez de Hagen, a ferida abre-se e dela brota o sangue revelador. Crimilda já não necessita de nenhum outro sinal, Sigfrid foi a vítima de Hagen e, atrás dele, se esconde o ódio de Brunilda. Crimilda comunica aos pais de Sigfrid que ficará em Burgondia junto da sepultura do seu marido e que não renuncia à justa vingança.

    ATIA CONSOLA A SUA VIUVEZ    

Átila, o vencedor de mil batalhas, estava triste por sua viuvez; sabendo da existência de outra pessoa na mesma situação, da afligida Crimilda, expôs os seus desejos de casamento, e a possibilidade de voltar a ser rainha..

    A infeliz Crimilda tinha ficado encerrada na sua dor, mas tudo se virava contra ela e as suas recordações; até o tesouro dos nibelungos tinha caído na mãos de Hagen; enquanto tudo sucedia deste modo, o também recente viúvo Átila tinha ouvido da bela e alienada viúva de Sigfrid e quis pedí-la em casamento. Não parecia possível que tal oferta fosse aceite, mas, após pensar nas possibilidades de poder que se lhe abriam ao unir-se a tão poderoso rei de Angra, Crimilda mudou de opinião e comunicou ao mensageiro Rudiger que ela aceitava a proposta do muito valente e nobre Átila e em partir assim que estivesse pronto o seu séquito, para encontrar-se com o seu prometido em Tulne, junto do rio Danúbio. De lá saiu a mais faustosa comitiva real que se tenha conhecido, a caminho de Viena, onde teria que celebrar-se o casamento, em Pentecostes. Terminados os faustos reais, os reis foram para Etzelburg, para instalar-se na capital do reino de Angra. Nada sucedeu durante sete anos, e um dia, Crimilda quis que Átila convidasse os seus, para que fossem testemunhas da sua grande felicidade. Consentiu o rei e enviou mensagem a Worms para que viesse à sua corte o rei Gunther e a sua nobreza. A notícia levantou dúvidas em Hagen, que se sabia marcado pela morte de Sigfrid, assim como noutros nobres participantes da conspiração; outros queriam pensar que Crimilda já se teria esquecido da morte canalha de Sigfrid e todos discutiam sobre a conveniência de tal viagem, mas o rei Gunther preferiu aceitar o convite da sua irmã, mandando organizar uma caravana de mais de mil guerreiros a cavalo e de nove mil infantes que acompanhariam os visitantes burgondos até Etzelburg, para dissuadir Átila de qualquer desejo de traição para com os seus convidados; enquanto saíam da corte as intermináveis colunas de homens armados, em Worms reinava a dor das esposas que ficavam atrás, pois elas já pressentiam o trágico final dessa impressionante comitiva.

    PONTO SEM RETORNO    

    A viagem não teve incidentes na sua primeira parte, e em breve chegaram os dez mil homens às margens do Danúbio, o primeiro obstáculo à marcha da expedição burgonda; encomendou-se a Hagen encontrar o meio de atravessá-lo e foi a mágica intervenção de umas ninfas do rio que deu a chave daquela passagem e, do mesmo modo, a advertência de que a morte os esperava no outro lado do poderoso rio. Hagen encontrou o barqueiro de quem as ondinas lhe tinham falado e conseguiu a sua balsa, embora tivesse que matar o obstinado homem, que se negava a prestar a sua embarcação a desconhecidos. Com ela atravessavam todos o crescido Danúbio. Na outra margem, Hagen, conhecedor da sua sorte, destruiu a balsa, fazendo saber a todos que já se tinha ultrapassado o ponto sem retorno; que agora já só lhes restava enfrentar o seu destino até as últimas conseqüências. Em breve se viu que a situação tinha mudado radicalmente, pois tiveram que enfrentar e derrotar o margrave Else, senhor daquelas terras, que tinha tentado impedir-lhe a passagem. Mais tarde, em Bechelarem, uniu-se a eles o margrave Rudiger, com mais quinhentos homens. Na fronteira de Angra aguardava-os Teodorico, que em breve esperava casar com a sobrinha de Átila, mas que ia ao encontro dos de Worms com a ideia de advertir-lhes daqueles planos de vingança que tinha visto em Crimilda; os burgondos responderam-lhe que sabiam qual era o desígnio da segunda esposa de Átila, mas que já tinham atravessado o ponto após o qual não se podia regressar, por isso, continuavam a sua viagem até o palácio do rei dos hunos, como se não fosse suceder-lhes nada.

    CRIMILDA RECEBE PÚBLICA OFENSA    

Não era o amor o que unia Crimilda a Átila, mas passaram-se sete anos antes de que a rainha dos hunos pusesse em marcha o seu plano de vingança..

    Crimilda recebeu o seu irmão, o rei, e pretendeu mostrar a sua felicidade por tê-lo junto dela. No entanto, Hagen espetou à sua anfitriã que sabia que esta suposta festa era simplesmente o disfarce de uma emboscada, fazendo com que Crimilda se obrigasse a demonstrar a sua animadversão para com os assassinos do seu primeiro e amado marido: depois, controlando-se, convidou os burgondos a despojar-se das suas armas, mas eles negaram-se; ainda mais colérica, Crimilda perguntou sobre a identidade de quem tinha podido inspirar tal temor nos convidados e Teodorico adiantou-se para comunicar-lhe que ele próprio tinha advertido os burgondos do perigo. Já instalado no palácio, Hagen, com a espada Balmung arrebatada a Sigfrid sobre o seu regaço, permaneceu sentado diante da rainha Crimilda e da sua guarda, em claro sinal de desafio, ao mesmo tempo que declarava publicamente ter sido ele quem matou Sigfrid. Crimilda viu-se insultada e, o que é pior, comprovou como a sua guarda retrocedia perante a figura tremenda e desafiante do decidido Hagen. Sem forças que a apoiassem, a rainha deixou que a recepção começasse. Nada passou no seu desenvolvimento e só ao chegar a noite, quando os burgondos quiseram retirar-se para os seus quartos, viram que lhes era impedida a passagem. Não obstante, retirou-se imediatamente a tropa dos hunos e os convidados puderam encaminhar-se para os seus leitos, atentos ao que se lançava ostensivelmente sobre as suas cabeças, dado que se fechava o copo dos hunos ao redor do seu quarto, mas bastou a presença de Hagen armado e presto para a luta para que a nova tentativa de matar os burgondos se desbaratasse.

    O BANHO DE SANGUE    

Crimilda pediu a Rudiger, a Teodorico, a Bloedel, que ajudaram a acabar com a vida do assassino Hagen, mas só Bloedel se ofereceu-se à sua rainha, para cumprir em seu nome a esperada vingança..

    Na manhã seguinte, os burgondos dirigiram-se para o templo totalmente armados; após a missa preparou-se o torneio, do qual o prudente Teodorico retirou os seus seiscentos homens; ficaram unicamente hunos e burgondos e também não sucedeu nada nas lides. Crimilda, num à parte, pediu ajuda a Teodorico para vingar o assassínio do seu marido, mas Teodorico recordou que estavam todos submetidos à lei da hospitalidade e que nunca atacaria quem se encontrasse sob a proteção de Átila. Com a negativa de Teodorico, Crimilda foi a Bloedel, o irmão de Átila, e este aceitou a vingança à hora do almoço. Com mil guerreiros entrou Bloedel na estância secundária onde se encontravam os infantes de Burgondia, anunciando a sua intenção de matar o assassino de Sigfrid, mas Dankwart, o irmão de Hagen, matou-o com a sua espada assim que terminou de falar. Desta forma começou a disparatada batalha, com armas quem as tinha e os que não dispunham delas com os restos do mobiliário nas suas mãos. Dankwart, ferido, penetra na sala principal, interrompendo a comida dos reis; Hagen, ao ver o seu irmão sangrando, mata, sem pensar uma segunda vez, o filho de Átila com a sua espada; Átila e Gunther tentam parar a matança mas, ao não conseguir-lo, unem-se à furiosa luta. Crimilda volta a rogar a Teodorico que empunhe a espada por ela, mas o godo pede uma trégua a Átila e retira-se com os seus homens do cenário. O margrave Rodagemar, sentindo-se também alheio à contenda, pede licença a Gunther para fazer a mesma coisa com a sua gente. E o combate prosseguiu com raiva até a noite; os esgotados adversários acordaram uma trégua, pedindo o prosseguimento do desafio em campo aberto, mas Crimilda interveio para negar tal possibilidade, exigindo a entrega de Hagen pela vida do resto dos burgondos. Perante a negativa de Gunther e dos seus irmãos, Crimilda mandou os hunos abandonar o palácio e prendeu-lhe fogo para acabar com todos os burgondos encerrados dentro dele. Mas o fogo também não terminou com os seus odiados inimigos, pois ao sair o sol estavam vivos e preparados para a luta. Rudiger, de regresso ao palácio, viu-se obrigado, contra a sua vontade mas a teor da sua lealdade para Átila, a empunhar as armas contra os burgondos até à morte; Teodorico, ao conhecer as notícias, regressou para o campo de batalha para resgatar o cadáver do imolado Rudiger, mas os burgondos tomaram a sua volta como um ataque e só ficaram em pé Hagen e Volker, com o seu rei, Hagen, por um bando, diante do ancião Hildebrando pelo outro. A ele se uniu Teodorico, e foi a sua espada a que feriu Hagen e terminou o combate com a captura de Hagen e Gunther. Levados à presença de Crimilda, esta mandou matar o seu próprio irmão e, com a espada Balmung nos seus braços, decapitou o Hagen. Então, Hildebrando, vendo que se matava um homem indefeso, matou Crimilda. Só ficaram com vida Átila, Teodorico e o velho Hildebrando, na Hungria, enquanto a cruel e despótica Brunilda estava a salvo, na remota Worms, sem se importar, ao parecer, por ter sido a causadora daquela matança sem sentido.

    A LONGÍNQUA REALIDADE HISTÓRICA    

O que ia a ser festa e alegria, terminou numa triste matança. Nada se respeitou nem sequer a inquebrantável regra da hospitalidade. Até Crimilda pagou com a sua vida a traição..

    Com este relato fabricado por trovadores, pelos restos do povo burgondo ou por algum dos seus exégetas, que viveram na distância do século XII, setecentos anos antes, trata-se de explicar a razão poética da desaparição do efêmero país dos burgondos, apoiando-se na figura trágica da traição duma mulher ao seu próprio povo, a manobra de uma mulher insensata empurrada pela febril ânsia de vingança; e situam a ação num cenário que os liberte da responsabilidade da derrota, além na muito remota indefensão do palácio de Átila, o huno, sendo também este rei outra vítima da sua esposa, não o protagonista da massacre. Realmente, os burgondos, vindos do Báltico até Worms numa marcha guerreira que durou centenas de anos, após o seu assentamento na Germânia, nas fronteiras com Sarmatia, e que não pára nessa fria margem do mar suevo. Os burgondos cruzam depois o Oder e continuam para o fértil sul, ao saqueio das antigas Gálias, saltando a barreira natural do Reno, ao finalizar o ano 406. São os bárbaros apanhando os despojos do que fora grandioso império romano. Param em Worms, e lá encontram o seu terreno sonhado, a efêmera capital do seu reino burgondo, mas os vândalos nômadas não podem ou não sabem manter o seu único reino mais de vinte e três anos, pois no ano de 436 o seu território é ultrapassado pelas hostes fugitivas de Átila, que se vê empurrado para o oeste pelas últimas forças romanas do general bárbaro Aécio e do seu aliado, o visigodo Teodorico, precisamente para as mesmas Gálias que Átila pretendia obter como dote no proposto casamento com Honória, a filha de Placídia, nesse oferecimento da assustada Roma. Gunther (Gundahar), o rei escolhido, não pode fazer outra coisa que oferecer o vulto do seu corpo e a vida de quase vinte milhares de homens ao experimentado e poderoso exército do pagão rei Átila, para quem o final desse reino burgondo nada significava senão mais outra vitória. Átila morreria mais tarde, e não precisamente pela mão dos extintos burgondos, pois a sua derrota nas proximidades de Troyes, nos Campos Cataláunicos, se produz no ano 451, diante do exército de Aécio: depois tenta atravessar os Alpes e também volta a ser rejeitado, desta vez por Leão I, morrendo, finalmente, no ano 453, dezessete anos depois de o reino dos burgondos ter cessado a sua brevíssima crônica.


Fim