LOCALIZAÇÃO

    Lá para o ano 1000(aC).    
   Os deuses maiores do Olimpo não estavam sozinhos; para sua maior glória e mais clara demonstração de poder, eles fizeram-se acompanhar sempre por uma miríade de divindades subordinadas e de uma tropa de deuses menores, que podiam ser, e eram com muita frequência, personagens de segunda fila unidos por laços familiares de qualquer índole, com um claro predomínio da bastardia na sua genealogia. Nesta parte vamos comentar o que se conta das personalidades celestiais, terrenas ou abissais, que estiveram ao serviço dos seus senhores, os deuses maiores, como é o caso da deusa Íris, filha de Taumas e de Eletra, irmã das duas ou sete Harpias, segundo se considere uma ou outra versão da sua história; da deusa Temis, irmã de Crono e esposa do seu sobrinho Zeus, com quem teve as suas filhas as Horas e as três Parcas dos infernos.


Íris, deusa da lei, companheira inseparável de Zeus e heraldo de Hera, se encarregava de manter sempre estendido o seu arco Íris, a ponte mágica entre o céu e a terra..
    INICIO    

    Taumante, gênio do mar, foi um filho do mar e da terra, que desposou Electra, a filha de Oceano, a deslumbrante ninfa oceânica, que não a famosa filha de Agamenon de Argo, e dela teve o arco-íris e os ventos. Estas filhas receberam, por um lado, o nome de Íris e, pelo outro, o de Harpias. Antes de continuar com Íris, digamos que as Harpias, personificação dos ventos súbitos e tremendos, foram consideradas, ao princípio, como divindades bondosas, seres de muito bom coração, apesar do que depois se passou a contar delas, sobretudo na mitologia romana. As Harpias foram três (Aelopos, Ocipeta e Podargé), segundo Homero, e oito (as duas anteriores e Ocípoda, Celeno, Ocitoa, Nicoleia e Aqueloo), segundo outros autores mais generosos com o seu número. No que respeita a Íris, que só gozou do melhor dos reconhecimentos, se dividem os seus apologistas em dois grandes grupos. Há quem as situa entre a plêiade de divindades virginais, e há também quem prefere considerá-la esposa de Céfiro, a divindade do suave e benéfico vento do Poente, que para outros esteve casado com a ninfa Cloris. Embora os seus passos pela terra estejam mal desenhados, talvez porque a sua função era voar de um lado para o outro com a velocidade do raio, podemos reconhecê-la com facilidade quando está relacionada com determinados deuses e determinadas cenas. Ve-la-emos voando, com a insuperável ajuda das suas amadas sandálias de ouro, às vezes também com asas nas costas, sempre jovem e bela e com um caduceu como o do seu companheiro de trabalho, Hermes, com o mesmo significado de paz e comunicação.

    DESCRIÇÃO DA PERSONAGEM    

    A bela Íris, à parte destes dados sucintos sobre a sua missão e os seus atributos visíveis, não tem umas características próprias que a convertam numa deusa conhecida e reconhecida. Quanto à sua representação, nunca contou com um grande repertório de personalizações ou imagens definidas, até às vezes é fácil, mesmo para o erudito, que seja confundida com outras divindades amadas similares, a não ser que mediasse outro sinal externo que possa fazer compreender que estamos perante a bela e rápida Íris. Até a sua história está escrita na cena das grandes façanhas de deuses e heróis, sempre ajudando com interesse os grandes personagens olímpicos a saírem de dificuldades. Por tudo isso, Íris é uma excelente auxiliar, uma divindade de necessária existência para a sobrevivência do próprio Olimpo. Íris era uma deusa feliz apesar de estar na segunda fila, uma das muitas divindades menores que se encontravam satisfeitas de poderem ser úteis aos doze grandes deuses, sem nunca se queixaram da missão que lhes correspondia, nem colocar-se sequer outra forma de ser ou de estar na corte celestial. Estas divindades, exclusivamente nascidas para trabalhar a serviço da corte celestial, sabiam que deviam limitar-se a obedecer todas as ordens que os grandes deuses quisessem dar e cumprir com exatidão todas as tarefas encomendadas, porque esse era o seu feliz destino, e por isso estavam livres das rivalidades e confrontos surgidos das invejas e dos rancores que, com tanta freqüência, se produziam entre os doze. Os servidores apareciam quando se necessitava deles e cumpriam à risca o ordenado, mais nada.

    A SUA HISTÓRIA    

    Não é muito o espaço que ocupa Íris em solitário, mas o que sim se considera com regularidade é que, além de mensageira constante de Hera, seja ela a mãe do Amor. Para situá-la no seu contexto, devemos compreender que a deusa Íris era o arco-íris em pessoa e, como tal, nexo de união entre o reino superior, o céu das divindades, e o reino médio, a terra dos mortais. No seu papel de mensageira, Íris compartilha (num plano inferior) com Hermes o serviço entre os dois níveis, céu e terra. Com respeito à sua estreita adscrição a Hera, este serviço está mais que justificado, dado que Zeus se apodera de Hermes, literalmente, para as suas mensagens e, sobretudo, para a libertina e ampla utilização dos dons do deus Hermes, do deus dos pés alados, como útil e discreto intermediário de urgência nos seus amores repetidos, e Hera tem que pedir ajuda à fiel Íris para não ficar incomunicada. Às vezes, Íris deve escolher Zeus como deus superior, sobre a sua esposa Hera, como quando há que avisar o poderoso Aigaião para que corra no auxílio de Zeus, contra Hera e os seus companheiros de rebelião. Em outras ocasiões, como quando tem que procurar e tentar convencer a parteira Eileteya, faz todo o possível para conseguir que vá esta auxiliar a perseguida Leto e assim o consegue, com preces e subornos. E para que esta fugitiva possa iluminar os seus filhos Apolo e Ártemis, Íris tem que arriscar-se a iludir à colérica e sempre vigilante Hera. E fá-lo, não por desobediência para com a sua senhora, mas para evitar que esta cumpra a sua vingança contra a boa Leto e seus filhos, engendrados por Zeus.

    AS HARPIAS    

Também os pré-rafaelistas mantêm o sabor mitológico e as suas donzelas virginais não são senão uma transferência do tema das Graças, Horas ou Parcas..

    Embora nos nossos dias esta palavra nos traga a imagem inequívoca de uns odiosos seres, femininos a meias, de umas pseudo-mulheres de características monstruosas e de malvadas intenções, as harpias foram, pelo menos na sua origem grega, umas bondosas e arriscadas divindades amadas que se aventuravam no interior, no mais recôndito dos infernos para, ao vôo, arrancarem ao deus das trevas as suas presas e resgatá-las, devolvendo-as ao seu mundo perdido. A palavra que as designa significa "arrebatadoras" e essa definição esclarece bem a sua função original de ladras de almas em sofrimento. Mas ao serem adscritas aos elementos em ação, como imagem divinizada dos ventos fortes, o seu papel se transformou no de um perigo, no duma força brutal da natureza; assim passaram a ser umas criaturas pálidas como o frio do seu vento; com uns pavorosos rasgos, tão terríveis como a sua força destrutora; uns seres temidos por serem tão vorazes como a tempestade que tudo arranca e destroça; uns monstros implacáveis, uns monstros que terminaram por ser os demônios alados que amenizavam os relatos dos míticos viajante marinhos, que só pensavam em comer as suas vítimas, ou em personagens que mudaram de bando e terminaram por ser elas as portadoras de vítimas inocentes para os moradores dos infernos, como quando se conta que foram as Harpias as que levaram as infelizes filhas de Pandáreo e Harmótoe às Erinies, para que estas as tivessem submetidas à escravidão.

    MENSAGEIRAS DOS DEUSES    

    Assim, com o rapto das órfãs de Pandáreo, as Harpias demonstravam a sua maldade, dado que atuavam de um modo sinistro e nefasto, pelo prazer da maldade, e faziam-no de um modo rasteiro, aproveitando a ausência da bela e poderosa Afrodite, quando ela já tinha-se decidido ir para o Olimpo, para pedir a Zeus maridos para as boas órfãs, dado que elas estavam sob a piedosa tutela das grandes deusas Afrodite, Ártemis, Atena e Hera, depois de o próprio Zeus ter acabado com a vida dos seus pais, como castigo pelo roubo, por parte de Pandáreo, do cão de ouro que cuidou do menino Zeus, quando o seu pai Crono o procurava para assassiná-lo. Mas toda esta pretendida maldade das Harpias se desvanece se consideramos que foi Zeus quem deu a ordem de que, enquanto Afrodite se derroga à sua presença, se castigasse as três filhas do ladrão, para expiar as culpas herdadas. Definitivamente, foi longo e pouco feliz o caminho que seguiram as criaturas, desde o transporte de almas infelizes ao de seres malvados, passando pela personificação dos ventos da tempestade. Mas, embora as Harpias tivessem tão má fama, se diz que uma delas, na sua união com Possêidon, deu vida ao primeiro corcel que receberam os homens como presente, ou que a Harpia Podargé, segundo Homero, na sua união com Céfiro, deu vida aos cavalos de Aquiles, com o qual se deixa que entrem na categoria de divindades positivas, dado que o cavalo era o bem mais apreciado para o homem eminente da antiguidade, quer fosse príncipe, político, proprietário ou guerreiro. Também se considerava que as Harpias, filhas de Taumante e da bela Electra como Íris, eram mulheres de longas cabeleiras loiras e belas proporções, com a sagrada missão de levar os criminosos condenados até a sua reclusão no inferno, para lá deixá-los confinados sob a inflexível vigilância das Erínias. Mas, sobretudo, se agora comentamos a sua complicada existência dentro da mitologia, é porque -antes de mais- as Harpias nunca foram outra coisa que cumpridoras mensageiras dos desígnios divinos.

    TÊMIS E SUAS FILHAS    

    Como quase todas as deusas do Olimpo, Têmis teve muito que ver com o fogoso Zeus, a cujo lado se sentava, para ajudá-lo e aconselhá-lo, porque Têmis era a representação da sabedoria unida à prudência, e o seu conhecimento se estendia da recordação do passado à certeza do que ia suceder. Têmis era sábia e correta, era o exemplo que os outros deuses - maiores e menores- deviam observar no seu comportamento oficial; Têmis era observada atentamente por todos os olímpicos, e ela precedia protocolarmente a Hera. Mas o seu historial não termina aí, dado que também a sua beleza e dotes comoveram facilmente Zeus e, como grata conseqüência desse apaixonado romance, em lugar do habitual castigo ou da possível perseguição da irada Hera, Têmis, além de ser ela a deusa que representa a lei, toda a lei, foi a feliz mãe de muitos e importantes grupos de filhas, como o foram as Estações ou as Horas, que são duas denominações que concorrem nas mesmas divindades encarregadas desse funcionamento incessante da máquina do tempo, quer fosse na divisão do dia ou na das diferentes partes do ano agrícola e climático. As três Horas ou Estações, encarregadas de abrir e fechar as portas celestiais e preparar todos os dias a carruajem de Hélios, para que este percorresse o céu derramando os seus benéficos e vitais raios solares. As Horas ou Estações tinham todas o dom da aparência juvenil, fragante e atraente da primavera e, para realçar o seu posto, nunca abandonavam -na sua representação artística- a flor que se lhes corresponda portar nas suas mãos. As três Estações ou Horas respondiam a estes nomes e qualificações: Diké, a justiça; Eunomia, a disciplina; e Eirené, a paz. Para terminar, e para que seja mais simples compreender a importância destas divindades auxiliares, recordemos que foi às Estações a quem se encarregou que acompanhassem e cuidassem, na sua adolescência, a recém-surgida Afrodite após o seu triunfo, após essa gloriosa saída triunfal da deusa do amor e a beleza da espuma do mar.

    TÊMIS, A TITÂNIDA PRIMIGÉNIA    

As tríades femininas se repetem na mitologia grega, já seja como Parcas, como Horas, Graças, Sereias, Fúrias, Górgonas, etc. Só as Musas superam o número, formando, isso sim, três trios, para manter a sagrada proporção..

    Para concluir esta visão de Têmis como mãe, digamos só que o foi de outras famosas e significativas irmãs, as três Moiras ou Parcas. Trata-se de um trio, como é comum na mitologia helenística, que tanto gosta de aderir-se ao número três: são Cloto, Láquese e Atropo, as divindades complementares que nos recordam a duração da vida e o seu fim, medindo com exatidão o tempo decorrido e o que ainda resta aos mortais. Mas Têmis, antes de nada, antes de ser amante de Zeus e mãe de tão ilustres filhas, foi, ao princípio dos tempos, na criação do Universo, a Titânida adscrita por Eurinome ao planeta que hoje chamamos Júpiter. Têmis também foi, já como uma deusa e no seu próprio templo, a divindade magnânima que deu a Deucalião e à sua esposa Pirra, os sobreviventes do Dilúvio, o presente de uma nova geração de homens e mulheres. De Têmis provém, pois, a humanidade renovada que teria de encarregar-se de povoar o nosso planeta; a nossa terra purificada por um dos muitos dilúvios, agora por essa chuva enviada por Zeus, e que serviu para aplacar a sua ira e a do resto do Olimpo, perante o repugnante comportamento de Licaon, ao querer convidar os deuses a um banquete no qual oferecia de manjar o seu próprio filho. Têmis converte-se assim na deusa que fecha o incidente e dá outra nova oportunidade aos humanos, como clara demonstração de que qualquer lei, qualquer ordem, passa por ela e nela encontra o seu lugar, porque a sua missão é a de fazer com que a ordem exista e se mantenha entre os povoadores da terra, mas não com a força nem com o castigo, senão com o império da lei e da justiça que o Olimpo depositou nela.

    GANIMEDES, O COPEIRO DOS DEUSES    

Ganimedes dá de beber ao seu raptor Zeus, numa metafórica representação de como matou o mais belo dos mortais, a sede do deus..

    Junto dos divinos personagens de segunda fila que se preocupam em atender os deuses de maior magnitude, merece destacar-se o caso muito particular do aposto donzel Ganimedes, o mais belo dos mortais e um dos quatro filhos do casamento do rei de Frígia, Tros e da bela Caliroe, a filha do deus Escamandro. O belo Ganimedes era irmão, pois, de Cleópatra, a Menor, de Ilo, o Menor e de Assáraco, segundo nos conta Homero em "A Ilíada", e personagens de importância na fundação e história de Tróia. Voltando a Ganimedes, digamos que este belo jovem, que naquela altura se encontrava trabalhando, inconsciente das paixões desatadas pela sua pessoa, ao cuidado dos rebanhos do seu pai nas planícies ou nas montanhas de Tróia, que até nisso há discrepâncias entre os clássicos, foi arrebatado por Zeus, que já não sabia como satisfazer o seu ardente desejo, e que se tinha decidido a conseguir o jovem pela força, dado que a sua beleza tinha-o transtornado até tal ponto que a ânsia da sua posse era a única coisa que lhe importava, e nem sequer o preocupava qual fosse a reação que tal aventura despertasse na sua constantemente airada esposa Hera. Para raptar o moço, o imaginativo e pitoresco Zeus revestiu-se com a forma de uma águia e com esse aspecto lançou-se sobre o pastor, aprisonouo e levou-o através dos céus até ao Olimpo. Com certeza, o mais estranho do caso, é que o rapto, apesar da sua violência inicial e do inusual componente homossexual, não desatou as justificáveis iras de Hera nem a menor resposta do jovem raptado, que poderia ter-se rebelado pela atuação de Zeus, impertinente pelo menos por não lhe ter pedido a sua opinião nem perguntado o seu parecer; mas parece que Zeus sabia fazer-se querer facilmente pelas suas vítimas, quando se decidia cortejá-las de uma vez por todas.

    GANIMEDES DESALOJA HEBE DO SEU POSTO    

Ganimedes raptado por Zeus, numa interpretação primitiva e bastante ingénua do mito..

    Chegados ao Olimpo e uma vez satisfeitas os impulsos mais urgentes de Zeus, o belo Ganimedes foi, além de ser aceito pelo resto dos deuses como amante do seu colega e superior, elevado ao cargo de copeiro dos deuses, o que significou a automática destituição de Hebe no serviço do néctar e da ambrosia, embora Hebe fosse filha de Hera e do imperdoável Zeus, e também deusa da juventude e uma exemplar filha, dado que era ela quem cuidava das necessidades do palácio de Zeus e Hera com inigualável presteza. Mas todo o seu rango e genealogia de nada lhe serviu quando o seu pai decidiu a troca e nem a própria Hera conseguiu anular a ordem do marido. De maneira que Ganimedes foi amado e mimado pelo maior dos deuses, quem lhe fez entrega de presentes tão apreciados como o dom da eterna juventude, para que fosse ainda mais parecido com a posposta Hebe. Além disso, Zeus, para honra de Ganimedes ou maior irritação da sua esposa Hera, empenhou-se em compensar o rei Tros pelo seqüestro do seu filho e deu-lhe a vide de ouro que tinha encarregado forjar a Hefesto, para que o rei a tivesse e exibisse no seu reino; do mesmo modo, lhe ofereceu um par de cavalos inigualáveis, quase como dote por este irregular casamento consumado com o seu filho. Como Hera não parava nas suas reclamações enraivecidas contra o belo Ganimedes, nem se esquecesse da afronta feita à filha, a prendada Hebe, e insistia em pedir reparação ao mal causado, o caprichoso Zeus terminou por reagir no sentido contrário e, em lugar de restituir à jovem deusa e excelente filha o seu perdido posto e dignidade, fêz com que, ao contrário, Ganimedes recebesse a honra máxima que Zeus concedia aos seus mais queridos seres, e assim se cumpriu, dado que o jovem copeiro se incrustou eternamente no firmamento e com a sua figura ocupou um nicho destacado do céu, adornando o seu corpo com estrelas em forma da constelação que leva o seu nome para sempre, de modo que nem os deuses nem os mortais nunca pudessem esquecer a sua beleza e o amor que Zeus tinha sentido e demonstrado para com ele.

    AS NOVE MUSAS    

A música, o canto, as artes em geral e a ciência em particular, eram o domínio das Musas..

    As sempre bem amadas Musas, esse benfeitor e tutelar grupo de desejáveis companheiras de todos os pensadores e artistas, está formado pelo número perfeito de três vezes três, por essas nove belas donzelas que são as filhas havidas no amor de Zeus e de Nemosina, a deusa da memória, por sua vez filha de Urano, o primeiro dos deuses, e da deusa da terra, a mãe Gêia. Portanto, além de ser sua esposa, Nemosina é tia de Zeus, mas o parentesco não turva para nada o resultado e só é um fator benéfico para a descendência do casal, dado que dessa união vai resultar o mais positivo grupo familiar da mitologia grega, junto às Graças ou Cárites. As Musas representam um novo enfoque, pois são uma família de divindades que estão à altura da civilização que se propõe da área de influência grega, e são-o porque se convertem em figuras simbólicas de grande importância por si próprias e pelo que representam: ser as divindades tutelares das artes e das ciências, a personificação do interesse do povo grego pelas formas conhecidas de expressão sensível e intelectual. As Musas, à parte do seu patrocínio do estudo e a criação, tocam instrumentos musicais, cantam harmoniosamente e dançam perante os seus companheiros no Olimpo, atuando sempre desinteressadamente, entregando-se aos outros com generosidade, como depositárias que são da sabedoria, da beleza formal e da alegria da divindade. Tal é a sua graça que se dizia que tinham sido os próprios deuses os que tinham pedido ao seu superior Zeus que este tivesse a deferência de engendrar tão necessários seres, para regozijo dos céus, e que - ouvida a petição - Zeus amou a Nemosina nove noites sucessivas, para que pudessem ser concebidas as nove Musas que o céu e a terra tanto ansiavam.

    AS FILHAS DE ZEUS E NEMOSINA    

    Antes de comentar a sua lenda, vamos ver a lista completa das atribuições destas nove irmãs, que é a seguinte:
  -Calíope era a primeira e mais poderosa das Musas, a responsável da eloqüência, da épica e até da ciência.
  -Clio era da história e, complementarmente, regia a conservação do recurso de todas as gestas e façanhas.
  -Erato foi a Musa musical e lírica do erotismo e, portanto, a encarregada de acompanhar os deuses e os humanos no amor e no casamento.
  -Euterpe encarregava-se de patrocinar a música e a lírica popular.
  -Melpómene estava originalmente encarregada do canto coral e de lá passou para os coros da tragédia.
  -Polinia era a Musa do canto sagrado e da mímica.
  -Tália, com a sua alegria, se encarregava de tutelar o teatro cômico.
  -Terpsícore tinha nascido para a dança e a ela se dedicou completamente, quer se tratasse de baile profano ou sagrado.
  -Urânia, a divindade que estudava os astros e os seus movimentos no céu.

    UMA CARREIRA ASCENDENTE    

    Ao princípio, as Musas eram somente umas boas ninfas que estavam associadas à água do interior da terra, aos mananciais que brotavam nas alturas das montanhas, e daí vem o seu nome, da designação às montanhas. Mas os mananciais não ficavam quietos, as suas águas caíam entre as rochas, entravam nos vales, passavam entre os assentamentos humanos, fecundando-os, e depois desciam até os rios maiores que terminavam por devolver a sua água ao mar original. Com a passagem do tempo, as Musas se foram especializando, associando-se o seu nome e atividade ao campo da palavra recitada ou cantada, como uma recordação do murmúrio dessas águas que saltavam com sonoridade entre os desfiladeiros da montanhosa Grécia, porque a palavra falada ou acompanhada de música era importante e respeitada em todo o país, e sentia-se a necessidade de que houvesse uma divindade específica, uma tutela celestial que a protegesse e ajudasse na sua manutenção e difusão. E como amostra da sua importância crescente, temos que ver como se recorre a elas para que decidam a luta artística entre Marsias e o próprio Apolo, o músico por excelência. O caso é que o pobre Marsias tinha topado com a dupla flauta que Atena fêz para o seu entretimento e a qual amaldiçoou, por uma questão de vaidade diante das brincadeiras. Afrodite e Hera, que não vem para o caso, dado que se riam dela ao vê-la com a cara inchada pelo esforço pouco habitual de soprar o instrumento novo, para a industriosa Atena. Ora bem, ao parecer quis o destino que Marsias soprasse a dupla cana de osso, sem nada esperar disso, só por ver como era o seu som, e ficou tão admirado que nem ele próprio podia dar crédito aos seus ouvidos: a flauta de Atena era melodia pura nos seus lábios.

    APOLO CHAMA AS MUSAS    

Apolo e a sua corte de Musas, outra cena corrente na cerâmica helenística.

    Se a Marsias surpreendeu pela forma que soava, a todos os que o ouviram com o maldito duplo tubo perfurado, pareceu um prodígio, e assim este bom homem se transformou em atração, sentiu-se famoso e foi a todos os lados tocando a sua flauta maravilhosa. Também chegou a Apolo a fama do flautista, de quem se dizia que era o melhor dos músicos, tão bom, se não melhor do que o mesmo Apolo. Um deus não pode ser ofendido com comparações desse calibre e o nosso músico supremo aproximou-se para ouvir o seu rival, e não com as melhores intenções. Ouviu como soava a flauta de Marsias e também ouviu como se orgulhava o vaidoso Marsias de que o comparassem com o deus. Apolo decidiu dar uma lição ao seu oponente e desafiou-o para um combate musical, no qual quem ganhasse teria o prêmio de fazer o que quisesse com o vencedor. Para dar mais importancia à prova, chamou as Musas como júri de toda a garantia; ninguém melhor do que elas poderia qualificar o músico entre os músicos. As Musas não tiveram mais remédio que ter que confirmar os dois adversários como os dois maiores gênios que tinham conhecido, juízo que não foi do agrado de Apolo, mas ao qual não se podia opor em boa lide, de maneira que Apolo inventou uma cilada para enredar Marsias e dar-lhe o seu merecido. A cilada funcionou e devemos recordar que o pobre vaidoso fêz com que se cumprisse a maldição de Atena na sua pobre pessoa, dado que se celebrou na segunda ronda do certame, com a condição de que cada um deles desse a volta completa ao seu instrumento e continuasse aberto o julgamento, agora com a diferença de que tinham que cantar ao mesmo tempo que Marsias tocava a flauta e Apolo a lira. Realmente, as Musas tiveram que dizer que Apolo tocava a sua lira e cantava como o deus que era, ao passo que o recém-chegado rival se esforçava, tentando assoprar e cantar, alternativamente. Com a sentença das Musas contra ele, o desgraçado admitiu a derrota e entregou-se em mãos do seu vencedor, de quem não se podia esperar o perdão, precisamente. E assim foi, Marsias morreu esfolado pelas mãos de Apolo e a sua pele ficou cravada numa árvore, para lição dos que tivessem a presunção de serem melhores do que os deuses. Mas, até num caso como este, o grande prestígio musical de Apolo não teria valido de nada se não tivesse ficado ratificado publicamente pela palavra final de uma autoridade em arte como eram as Musas. E até as boas Musas sabiam quão perigoso era medir-se em música entre as divindades, pois as três Sereias ficaram para o resto dos seus dias sem as asas de que antes dispuseram, quando enfrentaram e perderam numa batalha de canto com as Musas, num perigoso concurso estabelecido por desejo de Hera, que não pelo capricho de nenhuma delas, embora haja quem afirme que as Musas arrancaram as penas das asas das Sereias e com elas teceram umas triunfais coroas.

    OUTRAS ATUAÇÕES DAS MUSAS    

Uma interpretação renascentista, Apolo no Parnaso, com uma ampla companhia de Musas..

    Na trágica morte de Orfeu, são as Musas que sentem piedade do seu assassinato pelas mãos de Dionísio, e também são elas as que se encarregam de apanhar os seus destroçados restos com um cuidado maravilhoso, para enterrá-los onde lhes corresponde estar, junto do sagrado monte Olimpo, como última homenagem ao que fora Orfeu na terra. Também as Musas estão presentes com a sua dor nas longas e dolorosas exéquias de Aquiles, que duraram dezessete dias com as suas dezessete noites, como requeria a grandeza do herói que se chorava. Em outras cerimônias muito mais felizes, como o foram os casamentos de Aristeu, o jovem filho de Apolo e de Cirene, ou o mais famoso de Tétis e Peleu, também estavam elas, as doces e carinhosas Musas, rubricando com a sua presença a alegria da celebração, estando junto dos deuses nas suas horas de regozijo, cuidando amorosamente dos seus pupilos, preocupando-se de que nada faltasse aos seus protegidos, antes, durante e depois da cerimônia. Em outros momentos culminantes da mitologia, voltam as Musas a ser citadas muito especialmente, como quando se conta a aventura tão trágica de Édipo, a quem a Esfinge propõe um enigma aprendido delas, e que versa aparentemente sobre a identidade de um ser muito estranho, que resulta ser alguém bem próximo a Édipo e a qualquer de nós próprios, dado que se tratava nessa adivinhação de descrever criticamente o ser humano.

    NOVE IRMÃS DIFERENTES    

    As Musas estavam presentes de diferentes maneiras na vida prodigiosa dos deuses e dos heróis, cantando as empresas realizadas por eles, como fazia a boa Clio, enquanto a sua mão escrevia com detalhe o sucedido e até fazendo soar a trompeta da fama, para que ninguém pudesse ficar sem conhecer o fenômeno e o seu protagonista. Calíope, mais recolhida e pensativa, era quem fazia sua a ciência e dava forma à epopéia, compondo os melhores versos que a épica podia querer para si. Erato gostava de tocar -como Apolo- a lira e dançar ao seu som, animando os que gostavam da música a deixarem-se levar por ela até os seus limites, se é que existiam tais confins para a dança. Euterpe enchia de gozo quem se deixava atrair pela música dos mais humildes, e personificava o seu apego aos músicos modestos, acompanhada por um flauta rústica, e só com ela tinha suficientes meios para alegrar todos os que acreditavam na sua música. Melpómene estava submetida à disciplina coral de Dionísio e essa adscrição garantia a sua arte, o que lhe valeu ser incluída nas filas dos cantores da tragédia, cantores corais que deviam modular a sua voz à harmonia e à altivez do conjunto, para melhor levar à cena as grandes histórias nas quais se cruzavam os caminhos dos deuses com os passo incerto dos seres humanos. Correspondia à serena musa Polinia atuar como padroeira da música que se dedicava aos deuses, sempre pensativa e majestosamente escondida na sua longa túnica. Tália chegou a ser a Musa muito querida da festiva representação teatral da comédia, a Musa contraposta à sua irmã Melpómene. Era a deusa bacante e cômica da careta na mão e a coroa de hera sobre a frente, sempre disposta a fazer rir e sonhar os seus espectadores. Terpsícore dançava ao som da sua cítara, mas não como Erato, senão com a dignidade que devia dar-se às danças dramáticas. Por último, Urânia estava num mundo à parte do das suas irmãs, dado que ela cuidava do céu e dos corpos que nele brilham, e se ocupava de medir a orbe com o seu compasso, estabelecendo sobre a face da terra todos os muitos conhecimentos que se derivam da observação astronômica. Em conjunto, as Musas começaram a destacar-se do conjunto de divindades femininas, mais do que nada pela sua especialização, dado que Horas, Parcas, Harpias, Graças, etc., costumavam formar grupos compactos, sem individualismos destacados.

    AS GRAÇAS    

Rubens acrescenta a sua exuberância pessoal ao tema das Cárites..

    Finalmente, as três Graças ou Cárites que acabamos de falar formam o último grupo de serviçais divindades que se podem considerar neste grande grupo de personalidades auxiliares olímpicas. São as três Cárites as inigualáveis filhas de Eurinome, a deusa de todas as coisas, e do grande Zeus, e são assim de grandiosas, porque as três foram constituídas na fonte de toda a beleza e toda a graça que possa existir na terra ou no alto dos céus, num culto originado em Orcómeno, onde eram imaginadas como pedras caídas do céu, para depois serem representadas na escultura pudicamente cobertas por longas túnicas, e terminarem por ser, na mais liberal Atenas, as três mulheres nuas e alegres em toda a sua beleza. Para que tenhamos idéia justa da beleza física que acompanhava e distinguia estas três Cárites, as muito belas Calé, Eufrosine e Passítea (ou Aglaia, Eufrosina e Tália, segundo a versão que se escolha), devemos dizer que, numa determinada ocasião, as três enfrentaram-se à deusa da beleza e do amor, nada menos, porque se disputava o inexistente título da máxima beleza com Afrodite, certamente por desejo desta deusa, que quereria confirmar a sua condição de insuperabilidade na sua categoria, e assim se fêz. Para julgar escolheu-se talvez o melhor adivinho da Grécia, o cego Tirésias, embora naquela altura já não devia sê-lo, porque senão dificilmente teria sido árbitro de tal concurso, embora gozasse da visão interior que lhe concedeu Hera. A coisa é que Tirésias -que já tinha vivido mais duma aventura parecida- não teve mais remédio que dizer a verdade e apresentar Calé como a mulher que devia ser considerada mais bela. Como de costume Afrodite reagiu colericamente, com essa fúria que têm só os deuses para com quem se atreve a contradizê-los, e castigou quem tinha ousado desagradar-lhe, não a bela Calé, mas o sincero e honesto Tirésias, que converteu num muito doente ancião. Calé então sentiu-se responsável pela triste sorte corrida pelo castigado juiz e levou-o consigo para a ilha de Creta, para cuidá-lo e atendê-lo merecidamente.


Fim