LOCALIZAÇÃO

    Lá para o ano 1000(aC).    
   Todos os cantores de mitos se apressaram a citar a deusa Hera nas suas obras. São numerosos os textos em que aparece a deidade que estamos considerando. Através das diferentes descrições que vão perfilando os diferentes mitólogos, chega-se a configurar o verdadeiro caráter, por assim dizer, duma das deidades mais respeitadas e célebres do Olimpo. Hera, como esposa do grande Zeus, deve ser modelo de fidelidade e de honestidade. Mas, ao mesmo tempo -e isso é imputável às correrias do rei do Olimpo-, esta aparece revestida de atitudes que têm muito pouco que ver com as qualidades relativas a um comportamento ortodoxo, tais como inveja, ciúmes, mentira e vaidade.


O grande cantor Homero é rememorado pelo pintor Ingres, com a sua figura de "A Ilíada"..
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    A fonte originária para conhecer as relações da deusa Hera com todos os outros deuses e deusas do Olimpo será o grande cantor Homero.
  -Este explica-nos que a deusa Hera, "a dos grandes olhos", é uma deidade que tem a mesma linhagem que o poderoso Zeus, e que foi engendrada como a mais venerável e que, além disso, se converteu em esposa do rei do Olimpo.
  -A deusa Hera estava considerada como a rainha do Olimpo e, segundo conta o grande narrador Hesíodo, era filha do titã Crono e de Rea, deusa da terra.
  -Mas as suas peculiaridades e características abrangem aspectos de todos os tipos. Muito especialmente costuma-se criticar a esta deusa a sua excessiva teimosia, o seu crônico mau-humor e a sua atitude ciumenta e intransigente perante os amores do seu esposo Zeus. Claro que, se sucedesse o contrário, se esta pagasse ao rei dos deuses e dos homens com a mesma moeda, teria que ver a fúria que tal ação desencadearia naquele. Mas a fábula se resolve deste modo arbitrário que consiste, como já sabemos, em tornar alguns livres à custa da submissão dos outros.
  -A verdade é que os amores e idílios de Zeus encheriam a paciência do mais santo, para dizê-lo de alguma forma. As suas correrias chegam a tais extremos que até poderíamos falar de sofisticação. Reparemos senão na cilada utilizada por aquele para entrar nos quartos alheios, como é o caso da sua transformação em chuva de ouro para, assim, se introduzir na torre onde se encontra recluída Dânae -a bela filha do rei de Argo e Eurídice-, porque um oráculo consultado pelo seu pai tinha predito que este morreria nas mãos de um descendente seu. Efetivamente, o seu neto Perseu, nascido da ilícita união de Zeus e Dânae, mataria, embora de maneira acidental, o seu próprio avô, e as afirmações do oráculo cumpriram-se de sobra.
  -Noutra ocasião, a belíssima Alcmena, filha do rei de Micenas, foi vítima de engano por parte de Zeus, o qual, por ocasião de uma longa ausência do marido de Alcmena, tomou a sua própria forma e figura e conseguiu assim seduzir a bela rapariga. Desta união nasceria o grande herói Hércules. Diz-se que Alcmena morreu sendo já muito anciã, e que o seu corpo jaz nos Campos Elíseos, pois assim o quis Zeus em agradecimento aos favores que dela recebeu.

    O DOCE SONHO    

Os ciúmes da deusa Hera continuam sendo provocados pelo poderoso Zeus quem, nesta ocasião, se transforma em cisne para conquistar a bela Leda..

    Não é de estranhar que Hera, a primogênita feminina de Crono e Rea, mostrasse um talante rude perante as peripécias do seu luxurioso esposo. E isto foi aproveitado pelos detratores da deusa para classificá-la, pelo menos, de irascível.
  -Todos os mitologistas acusam a deusa de intransigência e rancor, no entanto não cabia mais alternativa que enfrentar o poderoso Zeus. Deste modo, talvez se pudessem conseguir resultados tendentes à emenda da sua conduta para com Hera.
  -Mas, dado que Zeus era o maior dos deuses e como, além disso, todas as restantes deidades lhe deviam respeito e obediência, não era fácil encontrar aliados contra os danos que infligia à sua própria esposa, embora todos coincidissem em que a causa era justa.
  -Freqüentemente, Hera pedia a ajuda aos outros deuses do Olimpo para compensar, e evitar, a infidelidade de Zeus. Mas ninguém se atrevia a enganar o rei dos deuses e dos homens. Umas vezes solicitava a ajuda do Sono para que adormecesse o rei do Olimpo e outras recorria ao conselho da doce Vênus com a intenção de plagiar os seus encantos e, assim, submeter afetivamente o lúdico e libidinoso deus. Homero descreve-o em "A Ilíada" na seguinte forma lírica:
  -"Hera deixou em rápido vôo o cimo do Olimpo e, passando pela Pieria e a deleitosa Ebatia, salvou as altas e nevadas cimeiras das montanhas onde vivem os cavaleiros trácios, sem que os seus pés tocassem a terra; desceu pelo Atos ao mar e chegou a Lenos, cidade do divino Toante. Lá encontrou-se com o Sono, irmão da Morte; e agarrando-lhe pela destra, disse-lhe estas palavras: "Ó Sono, rei de todos os deuses e de todos os homens!. Se noutra ocasião ouviste a minha voz, obedece-me também agora, e a minha gratidão será perene. Adormece os brilhantes olhos de Zeus debaixo das suas pálpebras, de maneira que, vencido pelo amor, se deite comigo. Dar-te-ei como prêmio um trono belo, incorruptível, de ouro; e o meu filho Hefesto, o manco de ambos pés, te fará um banco que te sirva para apoiar as nítidas plantas, quando assistas aos festins."
  -Respondeu-lhe o doce Sono: "Hera, venerável deusa, filha do grande Crono!. Facilmente adormeceria qualquer outro dos sempiternos deuses e ainda as correntes do rio Oceano, que é o pai de todos eles, mas não me aproximarei nem adormecerei Zeus /Júpiter se ele não mo mandar".

    AMOR E SONHO    

"Júpiter e Juno no monte Ida" por Barry. Uma das interpretações mais líricas do amor que, em ocasiões, se professavam as duas grandes deidades do Olimpo: Hera /Juno "formou com as suas próprias mãos os caracóis lustrosos, belos, divinais, que pendiam da cabeça imortal"..

    Embora a negativa do Sono parecesse categórica, no entanto, Hera convence-o usando a sua perspicácia. Dava-se o caso, e era um secreto que todos sabiam, que o Sono pretendia com insistência a bela Pasítea -a mais jovem das três Graças /Cárites- e, pela sua posse, o Sono faria qualquer coisa. Hera prometeu-lhe que os seus desejos seriam satisfeitos. O Sono obrigou-a a jurá-lo: "Jura pela água sagrada da Laguna Estígia, tocando com uma mão a fértil terra e com a outra o brilhante mar, para que sejam testemunhas os deuses sub-tartáreos que estão com Crono /Saturno, que me darás a mais jovem das Cárites /Graças, Pasítea, cuja posse constantemente anseio".
  -Hera cumpriu os requisitos exigidos pelo Sono e jurou pondo por testemunhas todos os deuses que este a tinha obrigado a nomear. No futuro, a deusa comprometia-se a interceder perante a belíssima Cárite, a favor de Sono.
  -Mas, antes de que o poderoso Zeus fosse vencido pelo Sono, era necessário, além disso, que as delícias do amor de Hera contribuíssem para incrementar o estado de estupor daquele. Para isso, a sagaz deusa pediu a Vênus "o amor e o desejo com os quais rendes todos os imortais e os mortais homens". A deusa do amor, a "risonha Vênus", acedeu à prece de Hera, a de "os grandes olhos" e, imediatamente depois, "desatou do peito o cinto bordado, que encerrava todos os encantos: encontrando-se lá o amor, o desejo, as amorosas conversas e a linguagem sedutora que faz perder o juízo aos mais prudentes. Pô-lo em mãos de Hera e pronunciou estas palavras: Toma e esconde em teu seio bordado a cinta onde tudo se encontra. Eu garanto-te que não voltarás sem ter conseguido o que te proponhas".
  -Sono e Amor unidos podem e conquistam tudo, e até o rei do Olimpo, o grande Zeus, cai na maléfica tela tecida com tais ingredientes pela sua esposa Hera. Enquanto aquele dormia placidamente, "vencido pelo Sono e pelo Amor e abraçado à sua esposa", um fiel emissário desta corria veloz para as naves dos aqueus para avisar Netuno -o deus das águas- que tomasse parte na batalha travada entre os homens. Este mensageiro não era outro que o doce "Sono" tentando cumprir a sua promessa feita a Hera: "O doce Sono correu para as naves aqueias para levar a notícia a Netuno, que cinge a terra; e parando perto dele, pronunciou estas palavras: Oh, Netuno! Socorre depressa os dânaes e dá-lhes glória, embora seja breve, enquanto dorme Zeus, a quem sumi em doce letargo, depois de que Hera, enganando-o, conseguisse que se deitasse para gozar do amor".

    O PEQUENO GÊNIO DA "FONTE DO ESQUECIMENTO"    

    "Sono", a quem também se denominava "Hipno" e aparecia relacionado com a "Noite" -Nix- e com a "Morte" -Tânato- Olimpo, não um herói, mas um pequeno gênio que, como ele mesmo afirma na sua resposta à deusa Hera, já não se atreve a troçar o poderoso Zeus, pois sempre o tinha descoberto ao acordar e, com medo de ser alvo direto da sua ira, teve que se refugiar apressadamente nas trevas escuras da Noite.
  -O Sono /Hipno habitava numa caverna profunda e escura, e onde os raios do sol não podiam penetrar. Segundo as lendas dos mais insignes cantores de mitos, essa escura cova albergava também outros espectros e duendes que faziam de servidores daquele. Também tinham como missão sair ao exterior da gruta para visitar os humanos e, assim, contagiá-los com a sua mágica função, isto é, adormecê-los.
  -Os domínios do "Sono" e os seus servidores e acompanhantes se estendiam pela vasta região do legendário país de Lenos. Aqui nascia a mítica fonte de Lete bem chamada "Fonte do Esquecimento" porque todos os que bebiam das suas águas perdiam a memória e se esqueciam da sua vida anterior e do seu passado. O seu voluminoso caudal formava um rio que decorria pelas profundidades do Tártaro e do qual bebiam as almas dos mortos para se esquecerem das penalidades antigas e das novas.
  -Deste modo, os grandes mitólogos estabeleceram uma íntima relação entre o Sono -ausência de consciência, por assim dizer- e a morte como símbolo acreditativo do total esquecimento.
  -A iconografia de todos os tempos representava o Sono /Hipno como um jovem alado, cuja figura levava um ramo com a qual os humanos eram tocados para produzir-lhes um sono profundo. As asas encontravam-se colocadas à altura das têmporas, e eram semelhantes às dos pássaros noturnos, como os mochos e as corujas, de tal forma que o seu vôo quase não era perceptível para o ouvido humano. E, assim, o Sono /Hipno vinha silencioso e se afastava sem ruído.

    A DEUSA DOS NÍVEOS BRAÇOS    

O mesmo artista que compôs "A Ilíada" deixou constância também desta figura que denominou "A Odisséia", em memória da obra do grande escritor clássico Homero..

    Como pudemos apreciar, costuma realçar-se o papel vingativo da deusa Hera e, embora seja reconhecida nela um preponderante papel entre os outros deuses do Olimpo; no entanto, o seu prestígio não é completamente aceito, em certas ocasiões, por causa das acaloradas disputas com Zeus.
  -No entanto, a deusa Hera compartilhava, pelo menos formalmente, para dizê-lo e alguma forma, e de maneira protocolar, o trono do Olimpo com o poderoso Zeus. Claro que, às vezes, se perdiam as formas e discutiam entre eles sem se importarem pelas críticas nem os comentários dos outros moradores do sagrado e mítico monte. Quando Hera assistia às reuniões celebradas no utópico Olimpo, os deuses que se encontravam presentes se levantavam para honrá-la por se apresentar perante eles. "Os deuses imortais, que se encontravam reunidos no palácio de Zeus, levantaram-se ao ver chegar Hera, a deusa dos níveos braços, e ofereceram-lhe copos de néctar. E Hera aceitou o que lhe apresentava Temis, a de belas faces, que foi a primeira que correu ao seu encontro".
  -Em certa ocasião Hera e Zeus discutiram sobre qual dos dois dava mais importância ao afeto e ao amor. Como não se punham de acordo -visto que, segundo a primeira, ela, como fêmea, sabia muito mais do amor do que qualquer outro deus, e conforme o segundo, são os varões os que mais conhecimentos afetivos desenvolvem e possuem-, decidiram submeter-se ao juízo do, por então, prestigioso adivinho e sábio Tirésias. Como este deu a razão a Zeus e, pelo mesmo motivo, desautorizou o critério de Hera, veio sobre ele um castigo infligido pela deusa que consistiu em privá-lo da visão. Ao cego Tirésias foi dado pelo poderoso Zeus, e para compensar a sua desgraça, o dom da profecia e da adivinhação; desta maneira, ficava reparado parte do mal causado pela vingativa Hera.

    TIRÉSIAS PREVÊ A TRAGÉDIA DE ECO    

O amor impossível de Eco e Narciso..

    E conta Ovídio em "As Metamorfoses" que o sábio Tirésias gozou de grande prestígio devido ao acerto das suas adivinhações e profecias:
  -"Em breve se tornou célebre o adivinho em toda a Beócia pela verdade dos seus horóscopos e a gravidade dos seus conselhos. A bela Liriope foi a primeira que certificou o maravilhoso das suas respostas. O rio Cefiso, enamoradiço, aprisionou-a um dia no labirinto das suas águas e violou-a reiteradamente. Ficou grávida Liriope, e pariu um filho de tal beleza que desde o momento de nascer já foi amado por todas as ninfas. Foi chamado Narciso. A sua mãe acudiu a Tirésias para que lhe adivinhasse o destino do seu filho, perguntando-lhe se viveria muitos anos. A resposta, frívola ao parecer, foi esta: "Viverá muito se ele não se olhar a si próprio." Mas o tempo se encarregou de demonstrar o seu tino com o modo de Narciso perder a vida e a sua paixão pouco sã".
  -Chegados a este ponto, é necessário confirmar que, entre tantas pretendentes com que conta Narciso, sobressai a bela ninfa Eco. Esta se apaixonou pelo jovem efebo assim que o viu; mas, por ter tido relações com o poderoso Zeus -a quem tinham cativado os encantos tanto físicos como pessoais de Eco- sofreu, como todos os que ousavam contrariá-la de um modo ou outro, a ira da deusa Hera, que condenou a Eco a não poder articular no futuro mais do que a última sílaba de qualquer palavra que se propusesse pronunciar.
  -Semelhante limitação léxica impedirá a Eco servir-se de belas e suaves frases para chamar a atenção do jovem Narciso e, ao mesmo tempo, atraí-lo para o seu regaço de apaixonada. Em tão adversas condições não é possível entender-se e, pelo mesmo motivo, Narciso rejeita o amor de Eco quem, num momento de arrebato, e depois de sentir-se desprezada, uma vez que se refugiou na espessura dos bosques, exclama como uma de maldição: "Oxalá quando ele ame como eu amo, se desespere como me desespero eu!".

    OBJETO INUTILMENTE AMADO. .. ADEUS. .!    

    A doce Eco tinha chegado a um extremo como o descrito, depois de esgotar todas as tentativas de entendimento com o jovem Narciso. Mas, por muito que o propusesse, nunca chegaria a iniciar uma conversa com este, pois o castigo que a deusa tinha imposto àquela tornava impossível a comunicação por meio do verbo ou da palavra, e isso que a bela Eco tinha fama de conversadora. Reparemos um instante na descrição que faz Ovídio de tais ocasiões:
  -"Ora bem, vendo Eco o Narciso ficou apaixonada por ele e foi-o seguindo, mas sem que ele notasse. Por fim decide aproximar-se dele e expor-lhe com ardente palavreado a sua paixão. Mas. .. como é que podia fazer, se as palavras lhe faltam? Por sorte, a ocasião lhe foi propícia. Encontrando-se sozinho o mancebo, deseja saber por onde podem caminhar os seus acompanhantes, e grita: "Quem está aqui?" Eco repete as últimas palavras: ". .. Está aqui". Maravilhado fica Narciso desta voz doce de quem não vê. Volta a gritar: "Onde é que tu estás?" Eco repete. .. "tu estás". Narciso volta a olhar, pasma. "Porque é que foges de mim?" Eco repete ".,. foges de mim". E Narciso: "Juntemo-nos!".
  -Mas o idílio não pode consumar-se, pois Narciso se encontra condenado a rejeitar qualquer outro amor e afeto que não sejam os seus próprios. Só se pode amar a si próprio e isso constitui o mais cruel dos castigos: "Desditado eu que não posso separar-me de mim próprio! A mim me podem amar outros, mas eu não posso amar. .. Ai! A dor começa a desanimar-me. As minhas forças diminuem. Vou morrer na flor da idade. Mas não há de aterrar-me a morte libertadora de todos os meus tormentos. Morreria triste se tivesse que sobreviver-me ao objeto da minha paixão. Mas bem compreendo que vamos perder duas almas numa única vida".
  -Portanto, devemos acrescentar à história dos amores impossíveis mais um casal, o formado por Eco e Narciso; o próprio Ovídio assim o testemunha na conclusão do seu belo relato:
  -"Pouco a pouco Narciso foi tomando as cores finíssimas dessas maçãs, coradas por um lado, esbranquiçadas e douradas por outro. O ardor consumia-o pouco a pouco. A metamorfose durou escasso minutos. Ao cabo deles, de Narciso não restava senão uma rosa belíssima, à beira das águas, que continuava contemplando-se no espelho sutilíssimo".
  -Ainda se conta que Narciso, antes de ficar transformado, pôde exclamar "Objeto inutilmente amado. .. Adeus. ..!" e Eco ". ..adeus!", caindo imediatamente sobre o relvado, morta de amor. As Náiades, suas irmãs, choraram-no amargamente acariciando-se as douradas cabeleiras. As dríades deixaram no ar as suas lamentações. Ora bem: aos prantos e às lamentações respondia Eco. .. cujo corpo não se pôde encontrar. E, no entanto, por montes e vales, em todas as partes do mundo, ainda responde Eco às últimas sílabas de toda a patética humana.
  -Podemos afirmar que, no dizer de todos os simbolistas, a flor do narciso leva este nome devido à significação ancestral do mito de Narciso, que o grande cantor clássico Ovídio descreveu tão poeticamente. O narciso é símbolo de presunção, vaidade e egolatria; e assim o interpretam todos os simbolistas.

    AS SERPENTES DE HERA    

O "Rapto de Helena". Segundo contam as lendas Hera, desgostada porque a maça de ouro não lhe foi entregue, fabricou uma imagem semelhante à figura real da bela Helena e, deste modo, se burlou e vingou soberbamente do seu raptor Paris..

    A ira de Hera torna-se também extensiva a heróis e a personagens legendários, tais como Hércules e Paris.
  -O primeiro foi castigado por Hera assim que a ciumenta deusa teve notícia de que Zeus era o pai dele. Este, conhecendo a fidelidade que Alcmena -esposa de Anfitrião, que tinha conseguido ser o seu esposo devido ao fato de ter sido capaz de vingar a morte dos irmãos de Alcmena- guardava para com o seu corajoso marido, e prendado da sua beleza, uma vez que tomou a aparência de um esposo tão feliz, mandou que a noite se prolongasse por um espaço de três dias completos. O poderoso Zeus, pai dos deuses e dos homens, esteve na companhia da bela Alcmena até ao quarto dia, em que já o sol saiu de novo.
  -Quando já Anfitrião voltava para consumar o seu casamento, observou que a sua bela mulher se comportava como se já o tivesse visto apenas uns instantes antes. Estranhado por semelhante atitude, e depois de deitar-se com ela, se encaminhou para a morada do adivinho Tirésias com o propósito de obter uma sabia resposta à sua persistente suspeita.
  -O ancião cego dissipou, com as suas explicações acertadas, qualquer dúvida que o corajoso Anfitrião ainda pudesse albergar com respeito ao possível comportamento estranho, para dizê-lo de alguma forma, da sua belíssima esposa Alcmena. Esta, durante a ausência daquele, tinha tido relações com outra pessoa. Mas o que o dolorido Anfitrião não podia suspeitar era que a identidade do acompanhante da sua esposa corresponda ao próprio Zeus; o rei do Olimpo tinha realizado outra das suas ousadas mentiras para conseguir os favores de uma mulher bela.
  -A verdade é que Anfitrião, cheio de controlada ira, decidiu castigar a sua esposa de forma contundente. Pretendeu queimá-la numa fogueira, mas depois de várias tentativas não conseguiu acender fogo algum pois, no momento em que as brasas se dispunham a arder, uma chuva torrencial o impedia. O furioso e despeitado esposo conteve a sua ira perante semelhante sinal vindo do céu e perdoou a mulher, pois, no seu entender, estava claro que o deus do trovão e da chuva -isto é, o próprio Zeus- tinha algo que ver com esse assunto.
  -Dos dois gêmeos que Alcmena deu a luz -um foi filho de Zeus e o outro, que nasceu uma noite depois, teve por pai Anfitrião- só sobreviveu um que, com o tempo, alcançaria a categoria de herói. Tratava-se de Hércules /Héracles que já deu provas da sua força assim que nasceu. Neste sentido, contam as crônicas que Anfitrião tinha introduzido no quarto dos gêmeos duas serpentes com o propósito de conhecer a identidade de cada um deles. Enquanto o filho do deus, o herói Hércules, enfrentou os répteis e os afogou, o filho de Anfitrião arrojou-se por uma janela.
  -Outras versões explicam que foi a vingativa Hera quem introduziu duas enormes serpentes na alcova dos gêmeos para, deste modo, acabar com o fruto da sua própria desonra. Além disso, foi esta mesma deusa quem impôs a Hércules o castigo conhecido pelos doze trabalhos do herói. O primeiro deles consista em estrangular, apenas nascido, duas serpentes; coisa que Hércules fez com certa facilidade. Os restantes castigos ou trabalhos foram de tal magnitude que a deusa Hera não pôde por menos que perdoar ao herói Hércules. Até lhe deu a sua filha Hebe por esposa.

    O POMO DA DISCÓRDIA    

O "pomo da discórdia" é entregue por Paris a Afrodita /Vênus, como reconhecimento da sua excepcional beleza..

    No entanto, o episódio mais conhecido e comentado e o que deu talvez mais fama a Hera e ao seu gênio brusco é o habitualmente denominado "Julgamento de Páris".
  -O veredito contrário à deusa Hera faz com que esta apareça furiosa:
  -"Tinha na alma aquele juízo de Páris e a injúria e a dura afronta da sua beleza então desprezada."
  -Tudo começou nos esponsais de Tétis e Peleu, aos quais todos os deuses foram convidados. Só a Discórdia /Eride foi excluída da festa. Talvez por temor de que trouxesse consigo -pois era considerada como a provocadora das guerras- os atributos que produziam desacordos e desentendimentos entre deuses e humanos.
  -A verdade é que a Discórdia /Eride, dolorida pela marginação à qual se viu submetida, arrojou com despeito e fúria uma maçã entre os convidados. Este fruto, segundo a explicação dada pela Discórdia, deveria ser provado pela mais bela das deidades presentes. E, o que é ainda mais grave, semelhante episódio provoca a guerra de Tróia, pois as deusas consideradas mais belas não se porão de acordo sobre qual delas superava em beleza as restantes. Portanto, não parecia tão fácil esclarecer um assunto tão fútil em aparência. Mas o que ficava claro era que, mais uma vez, a Discórdia tinha exibido as suas atribuições. Esta, ao arrojar a maçã de ouro entre todos os convidados ao casamento de tão ilustres personagens, tinha escrito para a mais bela e aqui, precisamente, começaria o desacordo entre as mais qualificadas aspirantes a semelhante título. O litígio foi colocado entre Hera, Afrodite e Atena.
  -Tomou-se então o acordo de que fosse o filho do rei de Tróia -isto é, Páris- quem julgasse sobre este aspecto. O jovem príncipe, que se tinha tornado célebre pela sua destreza nos jogos públicos, e também pela sua beleza, considerou que a mais bela das três deusas era Afrodite. De nada serviram as promessas que, a modo de suborno, lhe tinham feito Atena e Hera. Esta concedia-lhe o domínio sobre o universo, aquela punha-o em contato com a sabedoria e o seu poder sobre a ignorância. Mas Afrodite /Vênus, que conhecia a fraqueza de Páris pela beleza feminina, prometeu-lhe que o ajudaria a conseguir a mais bela das mulheres. Esta não era senão a esposa de Menelau, isto é, a bela Helena, titular do trono de Esparta, e a quem todos consideravam a mais bela do mundo. Páris não duvidou nem um instante em qual das três presentes lhe convinha mais, e deste modo decidiu que a maçã de ouro devia corresponder a Afrodite /Vênus.
  -O desgosto e a cólera da deusa Hera não se fizeram esperar; desde esse mesmo momento zangou-se com Páris e Afrodite, e, além disso, propôs-se desbaratar os planos que ambos tinham maquinado para raptar Helena. Para tal fim, fabricou um fantasma, uma imagem, similar à figura real da bela Helena, e enquanto Páris julgava tê-la arrebatado e seduzido, a verdadeira Helena viajava, em companhia de Hermes, para a terra egípcia, onde seria cuidada e custodiada pelo rei Proteu.
  -Mas, segundo contam as crônicas, Páris, ajudado em qualquer momento por Afrodite, não só conseguiu raptar Helena, mas que também levou os tesouros que Menelau -o esposo da bela Helena- tinha guardados no seu reino de Esparta.
  -Quando o engano e a rapina foram descobertos, Menelau declarou a guerra a Tróia e reuniu numerosos e experientes guerreiros que partiram em sessenta naves mandados pelo grande Agamenon, irmão daquele e rei de Argo.
  -Um dos episódios mais destacados da guerra de Tróia será aquele em que se enfrentam Menelau e Páris, num combate corpo a corpo. A ponto esteve o primeiro de acabar para sempre com o segundo, se não fosse por Afrodite que, para salvar o seu protegido Páris, provocou uma nuvem de pó que fez afastar Menelau e o seu exército do campo de batalha.

    HERA JUSTICEIRA    

Em ocasiões, o casal formado por Zeus e Hera discutiam e se infligiam castigos. Zeus era o mais forte e ganhava sempre. Aqui aparece Hera, vítima da ira de Zeus, quem a atou do alto com "inquebráveis algemas" e pendurou nos seus pés "grandes bigornas"..

    Mas a ira da deusa Hera tornava-se extensa, além disso, a todos os amores do seu esposo Zeus. Para conseguir os seus propósitos não vacilará em utilizar todo o seu poder de sedução e todas as suas manhas. Assim, jurará sem intenção alguma de cumprir a sua promessa como realizará, noutros casos, ações contra os seus princípios, por temor às represálias do poderoso Zeus.
  -O fato é que Hera tem má fama entre os mortais, pois é temida como deusa castigadora e vingativa. A sua fúria chega até os descendentes dos que aceitaram a relação com Zeus e sucumbiram perante as suas pretensões. O caso de Epafo, a este respeito, é significativo. Sucedeu que Zeus, como era costume nele, se apaixonou por uma bela sacerdotisa da sua esposa Hera, à qual transformou em vaca para que esta não suspeitasse dos seus amores por Io, pois tal era o nome da nova amante do rei do Olimpo.
  -Ao princípio, Io recusou o poderoso deus e rejeitou, uma e outra vez, os seus oferecimentos. Mas, depois de consultar o oráculo, decidiu aceitar as proposições de Zeus, pois a resposta da sibila indicava que, se Io não cedesse, provocaria a cólera do poderoso deus.
  -Hera, no entanto, descobriu as relações do seu esposo e a sua sacerdotisa, e, além disso, soube da cilada empregada por Zeus para enganá-la. Então, Hera, uma vez que descobriu qual era a vaca que personificava Io, enviou contra ela um enorme mosca que a picava persistentemente e não a deixava parar em lugar nenhum. Deste modo, fugiu para outras latitudes -diz-se que fugiu para o Egito pela passagem do Bósforo, que significa, desde essa altura, "passagem da vaca"-, até chegar a um lugar que, uma vez devolvida a sua forma humana, ela própria fundou com o nome de Mênfis.
  -Lá, nas margens do Nilo, no Egito, nasceria Epafo, filho de Zeus e de Io. Hera, dolorida por não ter podido conseguir os seus propósitos, que consistiam preferentemente em impedir a consumação dos amores do seu esposo, Zeus, com a bela Io, ordenou o rapto do filho de ambos. Mas Zeus lutou contra quem tentasse magoar Epafo e, ao mesmo tempo, fez fugir os seqüestradores do rapaz.
  -E contam as lendas que Epafo, com o tempo, foi um dos célebres reis do país egípcio.

    UMA VACA COMO PRESENTE    

    Existem outras interpretações e sentidos deste castigo que Hera impôs a Io. Algumas crônicas contam que, uma vez que a deusa descobriu o engano e o sarilho de Zeus e de Io, tentou com todas as suas forças dissimular o seu desgosto e, fingindo uma controlada calma, dirigiu-se para seu esposo Zeus para pedir-lhe como prenda a bela vaca dos seus rebanhos que sobressaía entre as restantes.
  -Ao princípio, Zeus duvidou em aceder aos desejos da sua esposa mas, graças aos dotes de persuasão que caracterizam Hera, esta não demorou em ter bem arrecadado o animal. Ao mesmo tempo, rogou ao seu fiel guarda, Argo Panoptes (= "que vê tudo"), o cuidado de tão apreciada prenda.
  -Embora contem as lendas que Argo tinha muitos olhos e que, pelo mesmo motivo, não tinha possibilidade de eludir a sua vigilância, no entanto, o poderoso Zeus solicitou os serviços de um cumpridor mensageiro, o esperto Hermes. Este pôs em prática, com presteza, os planos do seu vaidoso mandante, que consistiam em libertar Io das mãos do guarda Argo.
  -As conseqüências foram drásticas dado que, apesar de Argo ter sido um célebre guerreiro que se tinha tornado famoso por matar um bravo touro que assolava a região da Arcádia -daí em adiante vestiria sempre a pele desse animal- e acabar para sempre com a vida do horrível monstro Equidna -filho do Tártaro e que habitava nas pantanosas águas da laguna Estígia-, não pôde, no entanto, resistir os embates de Hermes e morreu por causa de uma pedrada que este lhe deu.
  -Apesar do desgosto que Hera levou ao saber o sucedido, decidiu premiar o seu fiel servidor e, pacientemente, mudou todos os olhos de Argo para a cauda de um pavão e para toda a sua plumagem; com o qual, desde essa altura, a beleza desta ave, consagrada a Hera, resplandece e destaca em colorido e brilho.
  -Alguns autores explicam que o guarda Argo de Panoptes tinha, realmente, dois olhos que viam para a frente e dois que viam para trás. Outras versões, em compensação, falam de que tinha um único olho no meio da fronte ou, noutros casos, se ampliava a três o número de olhos.

    "MIRMIDONES"    

Em todos os tempos, os artistas representaram as fábulas e lendas míticas..

    Também é significativo, com respeito à vingança da deusa Hera, o caso de Eaco, mais conhecido pelos diferentes mitólogos como o juiz dos infernos. Talvez por isso costuma ser representado portando uma chave e um cetro, atributos que fazem referência à legalidade e à justiça.
  -Tudo começou no dia em que Zeus descobriu a beleza oculta da filha de Asopo, senhor dos mananciais e dos rios. Desde o mesmo momento em que a viu, o deus olímpico se apaixonou por ela e decidiu raptá-la, como já tinha feito noutros casos. Num princípio, Asopo quis castigar o ladrão da sua filha Egina, e informado por Sísifo da categoria do gatuno, nada menos de que o rei do Olimpo, tentou enfrentar-se a ele para que lhe restituísse a sua bela filha. Mas Zeus cortou o assunto pela raiz, pois com respeito aos seus caprichos amorosos não admitia imposições de ninguém. Assim que teve diante de si o seu oponente, fulminou-o com o seu poderoso raio e obrigou, assim, a Asopo a retornar ao leito do seu rio. Diz-se que, desde essa altura, o rio de Asopo contém, em vez de dourada e fina areia, negro carvão e escuro cascalho.
  -Uma vez resolvido este primeiro problema, Zeus dirigiu-se, em companhia da bela Egina, para a ilha de Enone -também conhecida com o nome de Epônia-, lugar onde nasceria Eaco.
  -Quando Hera soube do nascimento de um filho de Zeus e Egina ficou furiosa e dispôs-se a perpetrar o maior mal possível no fruto da descendência de ambos. Para isso enviou uma horrível peste sobre a ilha e, quase de forma fulminante, morreram todos os seus habitantes. Deste modo ficou Eaco como único habitante daquele lugar de morte. Mas como este pediu a Zeus que repovoasse aquele lugar para, assim, ter companhia humana, o poderoso deus transformou as formigas que havia na ilha em seres humanos. No futuro, os povoadores da citada ilha se chamariam "Mirmidones", palavra que significa "formiga".

    JUNO É A HERA ROMANA    

A de "os níveos braços" em busca da longínqua luz. .. lhe pede a Juno-Eolo que liberte-a aos ventos..

      "E Juno que até hoje cansou
  -O mar, o céu e terra com temores,
  -Trocará os seus conselhos em melhores,
  -E, convertida de áspera em clemente,
  -Será de mais comigo apiedadora
  -dos romanos e togada gente,
  -de terra e mar universal senhora.
  -Isto dispus
irremissivelmente."

  -Estes versos de Virgílio mostram outras qualidades de Hera /Juno que não correspondem às descritas pelos gregos.
  -E, assim, podemos deduzir que o culto que os romanos ofereciam a Juno provinha de um ancestro mitológico que se diversificava na famosa Tríade composta por Júpiter, Juno e Minerva.
  -No entanto, na sua assimilação à deusa grega Hera, Juno adquire entre os romanos uma personalidade própria e autônoma. E, assim, é conhecida, de maneira muito especial, com o sobrenome de "Lucina", pois simboliza a luz que provém da sombra das trevas e da noite. Portanto, Lucina rege uma das duas luminárias, concretamente a Lua, e dirige e guia os seus movimentos com ordem e regularidade.
  -Em honra de Juno /Lucina tinham-se erigido altares em Roma como o levantado pelo rei sabino Titius Tatius, no ano 735 (a. C.). A sua festa coincidia com o princípio do mês de Março e denominava-se festa da Matronália. O seu significado aparecia relacionado com o caráter conferido à família pelos romanos, como quem aparecesse recoberto por um halo de vida considerada duvidosa, isto é, afastada dos cânones representados pelo pai, a mãe e os filhos, ficava relegado e excluído dos festejos.

    HERA / JUNO NA ARTE    

    Todos os artistas da antiguidade se preocuparam de representar a deusa Hera e destacá-la habitualmente rodeada pelos seus muitos atributos, tais como o véu, a lança, o escudo, o ganso, o pavão, os lírios, a romã e a faca.
  -Também se erigiram templos onde o culto à deusa adquiria sentidos diversos. Por exemplo, em Argo se levantava um dos mais grandiosos templos de quantos se tinham construído em honra de Hera. Era adorada, em numerosas ocasiões, como deusa do casamento e, pelo mesmo motivo, relacionada com as qualidades morais da mulher.
  -Além disso, uma das colinas da cidade de Esparta tinha sido batizada com o nome da célebre deusa. Não obstante, as primeiras esculturas realizadas em recordação e memória de Hera não gozavam da qualidade artística que, mais adiante, conseguiram os mais afamados escultores gregos. Entre toda a iconografia sobre a deusa Hera cabe destacar a estátua realizada por Policleto. Também a denominada "Hera Barberini" e a conhecida como "Hera Farnesio". Aparece, em qualquer caso, representada em moedas e relevos e conservam-se bustos da sua figura em alguns museus de prestígio. O Museu de Nápoles, por exemplo, guarda entre os seus mais apreciados tesouros uma cabeça -talvez um dos testemunhos mais antigos- da deusa Hera.


Fim