LOCALIZAÇÃO

    Lá para o ano 1000(aC).    
   Entre os diferentes filhos de Crono -símbolo do tempo e do seu decurso e mobilidade- e Rea -que possui a significação mítica da terra lavrada e fértil- sobressai Hades. Aliado com os seus irmãos, Possêidon e Zeus, na luta contra os Titãs, travará cruentas batalhas e levantar-se-á com a vitória final. Diversas lendas conferem-lhe o título do rei das profundidades abissais e das forças ocultas. Senhor e dono de todos os lugares tétricos e de perdição e dominador de quantas condutas que atentam contra a moral estabelecida e convencional tenham surgido e se tenham desenvolvido, através de todos os tempos, é a personificação do mal e, na partilha do mundo realizada depois da derrota dos Titãs, correspondeu-lhe o domínio sobre o Tártaro e os Infernos.


O deus do mundo subterrâneo. os seus rasgos físicos são muito parecidos aos do próprio Zeus..
    INICIO    

    Os relatos legendários sobre Hades indicam que, apenas nascido, foi engolido pelo próprio pai. Este vivia atormentado porque temia que os seus próprios filhos o destronassem, pois como lhe tinha sido previsto pelos agoureiros , assim que a sua esposa Rea dava à luz, Crono dispunha-se a engolir o recém-nascido. No entanto, não sucedeu a mesma coisa com o seu filho Zeus, dado que Rea decidiu enganar o seu cruel esposo. Em lugar do menino que acabava de parir, lhe entregou uma pedra embrulhada cuidadosamente em fraldas e, sem notar a troca, Crono /Saturno engoliu-a. Quando Zeus chegou à maturidade dispôs-se a lutar contra o pai e fê-lo vomitar todos os seus irmãos. Os filhos conjuraram-se contra o pai e expulsaram-no do seu reino. Repartiram os despojos e, ao mesmo tempo, inauguraram o que se chamaría "Saga dos Olímpicos" ou "deidades superiores". Assim chegou às mãos de Hades /Plutão o poder e o mandato sobre as trevas exteriores, e sobre as ferozes criaturas que nelas habitam. Basta realçar o pestilente rio Aqueronte, o sangüinário cão Cerbero e o interessado e aproveitador Caronte, como três amostras ou símbolos da natureza adversa, do cruel animalismo e da perversa humanidade, respectivamente. O Aqueronte rodeava com as suas escuras águas um extremo do Tártaro -a lagoa Estige limitava o outro extremo-, e às suas margens consumiam-se as almas dos mortos que ainda não tinham sido julgadas. Cerbero era o cão monstruoso que guardava as portas do Inferno e que impediam de sair quem lá tivesse entrado. Caronte só permitia subir à sua barca quem previamente lhe tivesse pago um óbolo.

    O INVISÍVEL    

Os mortais tentam cegar a Polifemo, gigante monstruoso que tinha um só olho em meio da frente e que, junto com outros Cíclopes, foi arrojado às trevas..

    Contam as crônicas que Crono /Saturno, assim que Zeus o obrigou a devolver à vida todos os filhos que tinha engolido, sofreu a ira comum dos seus diretos descendentes. Estes conjuraram-se contra o seu pantagruélico pai e infringiram-lhe uma decisiva derrota. Na batalha tomou parte ativa Hades, que ajustou o capacete que o tornava invisível e conseguiu desarmar Crono e os Titãs, enquanto Zeus os derrubava com o seu poderoso raio e Possêidon os segurava com o seu tridente.
  -Os Ciclopes tinham doado aos deuses esses atributos representados pelo capacete de Hades, o raio e o trovão de Zeus e o tridente de Possêidon. Aqueles seres de descomunais proporções, considerados como os mais hábeis e fortes entre todas as criaturas e que tinham só um olho no meio da fronte -Ciclope = "olho circular"- mostravam, assim, o seu agradecimento aos deuses do Olimpo porque os tinham ajudado em tempos de adversidade. Por exemplo, quando foram expulsos do céu e atados às colunas do insondável abismo subterrâneo, o poderoso Zeus encarregou-se de libertá-los. Embora tal ação não deva ser qualificada como puro altruísmo dado que com ela se pretendia seguir as diretrizes do oráculo, que tinha predito a Vitória sobre Crono e os Titãs só se se libertavam os Ciclopes, se eram devolvidos ao seu antigo lugar de origem e se eram restabelecidos na sua ancestral condição de criaturas imortais. Resultava, pois, de capital importância levar a cabo favoravelmente tão especial missão.

    OS NOMES DE HADES    

Ninguém podia abandonar esse tétrico mundo abissal, esse lugar de castigo que era o Tártaro..

    Ao princípio, o próprio significado da palavra Hades era associado ao capacete que os Ciclopes lhe ofereceram e como se diz, ter sido confeccionado com a pele de um cão. E, dado que tinha a curiosa qualidade de tornar invisível o seu possuidor, combinou-se apontar que o nome Hades encerrava em si um conteúdo semântico relacionado com certos conceitos alusivos à citada característica: por exemplo, "o que se torna invisível" ou "o Invisível".
  -No entanto, o próprio nome de Hades era como uma espécie de tabú para os antigos. E evitavam no possível pronunciar tal nome, por temor em cair em desgraça perante o mais temido dos deuses. Deste modo surgiram numerosos eufemismos para invocar o deus dos abismos subterrâneos e do Tártaro. Entre eles podemos destacar aquele derivado das entranhas ocultas da terra e das suas próprias riquezas minerais. Dado que Hades governava em todos os lugares escuros e sinistros, era reconhecido como deus da riqueza oculta no subsolo e chamado "Plutão, o Rico".
  -Também entre os clássicos lhe era reconhecida a faculdade de conferir vida aos diferentes estratos terrestres. O grande pensador Empédocles, que viveu no século V aC., e ao qual se reconhece uma grande aportação ao ecleticismo -teoria filosófica que se caracteriza por recompilar e selecionar aquilo que julga essencial noutras correntes do pensamento-, nos falava de Hades "o Nutridor", dado que a riqueza do subsolo dependia dele. Também era chamado "Clímeno, o Ilustre", pois este personagem açambarcava diversos títulos míticos.

    O BOM CONSELHEIRO    

A superfície da terra estava cheia de buracos e cavernas sem fundo que a conduziam, segundo a crença popular, aos domínios do deus do Averno..

    Talvez um dos epítetos mais legendários para referir-se a Hades /Plutão seja o de "Eubuleu, o Bom Conselheiro". Narradores de mitos contam a lenda de Eubuleu, o porqueiro; este se encontrava cuidando porcos num frondoso azinhal quando um ruído ensurdecedor chamou a sua atenção. Observou que o próximo vale, até essa altura pleno de colorido e beleza, coberto por uma tupida erva que, para dizê-lo de alguma forma, servia de abrigo a emaranhadas matas de flores silvestres que aqui e alí realçavam, tornava-se escuro e cinzento. E viu que a terra se abria para formar um enorme buraco e que engolia com ansiosa voracidade tudo quanto encontrava à sua passagem: flores, ervas, árvores. .. até a manada de porcos de Euboleu foi engolida pela terra. Da sua profundidade cavernosa surgiu, como por encanto, uma manada de negros corcéis, todos eles atrelados a um carro ruidoso conduzido por um ser com figura de homem e de cabeça invisível. Apenas decorreram uns instantes e já as cavalarias viravam as garupas, entrando no escuro poço por onde acabavam de sair. Mas a carruajem levava uma preciosa carga que o seu misterioso condutor segurava com força. Tratava-se duma jovem que chorava e gritava chamando pela mãe. Acabava de ter lugar um fato mitológico que passaria à história: o "rapto de Prosérpina". Euboleu, a única testemunha, saberia mais tarde que Hades, o rei dos abismos subterrâneos, conduzia a carruajem que transportava Prosérpina até os seus fedorentos domínios do deus das trevas. E quando Ceres, mãe da infeliz jovem, passou por aqueles lugares procurando a Prosérpina, Euboleu contou-lhe o que tinha visto.

    RAINHA DE HADES    

    Algumas versões do famoso "rapto de Prosérpina" interpretam o legendário fato sob perspectivas diferentes das estabelecidas pelos cantores de grandes mitos. Em primeiro lugar, justificam a ação de Hades /Plutão dado que, devido ao seu desagradável aspecto, nenhuma deusa, ninfa ou musa queria compartilhar a sua vida, nem ser recluída no abismo insondável que tinha por morada. Não teve outra opção senão procurar uma companheira à força e, por isso mesmo, decidiu raptar a jovem Prosérpina. Quem participa de tais argumentos acrescenta que Hades /Plutão permitiu que Prosérpina compartilhasse com ele o domínio do mundo subterrâneo; até se afirma, em certas ocasiões, que a jovem venceu a repugnância que, a princípio, sentiu pelo seu raptor e terminou por aceitar a oferta que este lhe fazia, pelo qual se converteu em rainha do Tártaro. Mas a mãe da jovem, uma vez que soube pela boca do porqueiro Euboleu os pormenores do seqüestro de Prosérpina, queixou-se ao poderoso Zeus e este decidiu solucionar tão delicado assunto. Deliberou, junto com ambas partes, que Prosérpina vivesse, a partir de então, seis meses no Averno e outros seis afastada de tão pestilente lugar. As preces da sua mãe Ceres perante Zeus não resultaram, portanto, infrutíferas. Assim, havia um tempo em que Perséfone /Prosérpina personificava a força oculta sob a terra para que esta produzisse riqueza mineral e vegetal; e ao contrário, existia outra época em que permanecia nos bosques escuros da região das sombras, nos confins de um mundo cheio de mistério e limitado pelas águas pantanosas dos rios do inferno.

    ÁGUAS TURVAS    

Tetis tinha submerso a o seu filho Aquiles no água da laguna Estigia, agarrando-o pelo calcanhar, para fazer-lo invulnerável. Mas um certeiro dardo foi a cravar-se no único lugar de o seu corpo que não se tinha molhado, isto é, em o seu calcanhar; e o herói Aquiles morreu..

    Esses domínios de perdição se encontravam, pois, sulcados por rios ou salpicados de lagos, mais profundos e fedorentos. Cada um deles tinha a sua própria característica; recordemos o rio "Flegeton", com o seu caudal de fogo e rochas que se chocavam entre si para produzir um ruído espantoso. E mencionemos, também, o "Aqueronte", cujas margens se povoavam de criaturas desoladas à espera de julgamento.
  -Mas, sobretudo, paremos para contemplar a legendária lagoa "Estige", com as suas profundidades abissais tão cheias de mistérios e segredos. Nas suas águas, a nereida -ninfa dos mares e os oceanos- Tétis banhou o seu filho Aquiles para torná-lo invulnerável, e segurou-o pelo calcanhar. A tradição mítica, não obstante, esclarece que este corajoso herói morreria como conseqüência duma flecha que Páris lhe cravou no único ponto vulnerável do seu corpo, isto é, no calcanhar. Desde essa época foi incorporada ao patrimônio lingüístico da humanidade uma frase carregada de conotações e que todos conhecemos: "o calcanhar de Aquiles".
  -As geladas águas da lagoa Estige tinham, além disso, a propriedade de obrigar as deidades a resolver os seus possíveis conflitos e diferenças sem cometer perjuro. Contam as antigas crônicas que Íris era a encarregada de colher a água subterrânea e transportá-la numa jarra de ouro até o Olimpo. Se os deuses jurassem "pela água da lagoa Estige" e não cumprissem as suas promessas, viria um cruel castigo; se lhes privaria do néctar e da ambrosia, e durante um longo período de tempo não poderiam viver no Olimpo.
  -Também se dizia que qualquer peça metálica, ou de cerâmica, arrojada à lagoa Estige, se partia em pedaços; e unicamente os cascos dos cavalos resistiam ao seu efeito destrutivo. Além disso, as suas pestilentes águas exalavam um fedor venenoso e letal.

    A NINFA DE SIRACUSA    

    Os grandes narradores de mitos explicam-nos que, quando Hades /Plutão arrastou Prosérpina para os seus domínios subterrâneos, esta não se encontrava sozinha, mas que a seu lado se encontrava a bela Cianes, a quem todos chamavam "Ninfa de Siracusa". Esta corajosa jovem enfrentou o deus do Averno e quis dissuadí-lo, com muito boas razões, da sua brutal ação. Mas o implacável deus afastou-a do seu caminho com gesto altivo e, como castigo por se ter oposto aos seus desígnios, converteu-a num manancial de límpidas e cristalinas águas.
  -Ovídio, na sua obra as Metamorfoses, narra os fatos referidos com ligeiras variantes: "Em Aretusa, onde o mar está cercado por rochas que o rodeiam por todos os lados, vive Cianes, uma das mais belas ninfas da Sicília. Esta ninfa, tendo saído do fundo das águas e reconhecido Plutão, falou assim: "Não te moverás daqui; não convém que de Ceres sejas genro contra a sua vontade. Se se me permite fazer comparações, direi que não é esta a maneira adequada de amar esta jovem princesa. Eu mesma fui noutro tempo amada por Anapo, mas foram as suas razões as que a mim me satisfizeram e nunca o temor nem a violência assistiram o nosso himeneu." Terminado este discurso, a ninfa quis impedir que Plutão continuasse o seu caminho, mas este deus, irritado por este novo obstáculo, picou o seu cavalo com vigor; e deu um golpe tão estridente que caíram no fundo as águas abrindo-se um caminho que o conduziu ao seu império. Ficou Cianes despeitada pelo rapto de Prosérpina e pelo desprezo que tinha feito Plutão não a ouvindo nas suas águas sagradas, deixando no fundo do seu coração uma tão grande dor que desde este momento não parou de derramar lágrimas, tantas que em água foi transformada. Viu insensivelmente abrandarem-se todas as partes do seu corpo. Os seus belos cabelos, os seus dedos, os seus pés, as suas pernas, tudo, se converteu em líquido. Depois, as suas costas, os seus ombros e os seus peitos em rios se transformaram. Enfim, que a água tomou nas suas veias o lugar que ao sangue correspondia, não restando da sua pessoa senão a fluidez desse elemento."

    O MITO DO CÃO CERBERO    

Em o mundo subterrâneo do Tártaro tinha também criaturas deformes e monstruosas que serviam a o seu amo Hades /Plutão..

    O aterrador alarido de Cerbero e a sua ferocidade desmedida atemorizavam qualquer criatura. Hades /Plutão contava com um furioso vigilante que ninguém nunca tinha ousado enfrentar. Além disso, a simples presença de tão desagradável monstro infundia pavor. Tinha um mínimo de três cabeças e um máximo de cinqüenta, pelo qual resultava impossível eludir a sua vigilância; das suas costelas nasciam répteis que se enroscavam nas suas extremidades e se arrastavam por todo o seu deforme corpo, que desprendia um cheiro nauseabundo. Da sua boca saía um tufo de hálito venenoso que impedia aproximar-se qualquer criatura. Tinha sido engendrado por Equidna (nome que em grego significa "víbora"), que era um monstro com cauda de serpente e corpo de mulher e habitava nas profundidades duma caverna oculta nas montanhas inacessíveis da mítica região de Arcádia. O pai do cão Cerbero era Tifão, monstro de proporções desmesuradas que tinha uma centena de cabeças de dragão e, com as suas fantasmagóricas extremidades, podia abranger toda a orbe; dos seus olhos saía uma espécie de fogo que arrasava quanto se punha na sua frente. Contam as lendas que ainda mora nas mesmas entranhas do vulcão Etna, e que aqui o aprisionou o poderoso rei do Olimpo, servindo-se de uma foice fabricada com diamantes e pedras preciosas.

    CERBERO, DOMINADO    

    Apesar do anterior, o cão Cerbero foi submetido e a sua vigilância eludida, por heróis e por mortais. Conta-se que, em certa ocasião, Orfeu desceu aos domínios subterrâneos de Plutão à procura da sua amada Eurídice e, ao topar com Cerbero, em vez de fugir pôs-se a tocar a sua lira. As notas melodiosas que o grande virtuoso da música arrancou do seu instrumento conseguiram adormecer o feroz animal e, deste modo, Orfeu pôde trespassar o umbral do Tártaro e encontrar-se com Eurídice, a quem a picada de uma serpente venenosa tinha trazido até tão tétrica morada.
  -Quando já Orfeu julgava ter livrado a sua bela esposa Eurídice do tormento do Averno olhou para trás, talvez com a intenção de verificar se a sua amada o seguia e, naquele instante, consumou-se a sua desaparição. Em vão tentou de novo penetrar no reino das sombras, dado que o barqueiro Caronte se negou a subí-lo na sua barca. E assim permaneceu durante sete dias e sete noites vagando, com uma aguda dor como única companhia, pelas pestilentes margens do rio Aqueronte.

    UM ESPAÇO CHEIO DE FANTASMAS    

    Quem melhor narrará os diferentes azares de Orfeu quando se decide ressuscitar a sua jovem esposa Eurídice, será o grande escritor Ovídio. Descreve, ao mesmo tempo, algumas cenas e detalhes que darão conta da própria idiossincrasia desses lugares de sombras: "Como a bela Eurídice se deitara, com outras ninfas, num prado verde certa vez, uma serpente picou-a num calcanhar e morreu muito poucos dias depois do seu casamento. Orfeu, depois de ter chorado muito tempo a perda da sua amada esposa, vendo quão inutilmente suplicava com as suas lágrimas às divindades do céu, decide descer ao reino das sombras para interceder pela sua querida esposa Eurídice perante as divindades infernais. Atravessa um vasto espaço povoado de fantasmas e apresenta-se, por fim, perante Hades e Prosérpina, reis destes lúgubres lugares. Recitando ao som leve e doce da sua lira, lhes faz saber as suas penas: Oh, deuses destes antros em que nos afundamos os mortais! Não pensem que venho meter o nariz nos vossos domínios nem sequer para encadear de novo o cão Cerbero de três cabeças serpentinas. A minha esposa, morta em plena juventude, é o único móvel das minhas ações. Não me fizeram caso os deuses da luz. Vocês, que não repudiaram o amor, concedam-me que possa ressuscitar a minha Eurídice! E eu prometo que, quando os anos fatais da vida normal decorram...ela e eu regressaremos para sempre a este país de sombra e de infelicidade!.
  -Assim recitou Orfeu ao som doce e leve da sua lira; música tão sugestiva que perturbou por um momento a existência infernal. Tântalo esquece-se da água que não pode beber. A roda de Ixion pára. Sobre a sua pedra senta-se Sísifo. Titio deixa de sentir no seu coração as picadelas das aves vingadoras. As filhas de Belo interrompem a sua tarefa de jogar água ao poço sem fundo. E até nos olhos das fúrias aparece uma rara umidade de lágrimas. Hades e Prosérpina, emocionados, não podem negar-lhe a graça que pede. Ordenam que se aproxime Eurídice, que ainda coxeia da picada da serpente. Mas impõe a Orfeu uma condição: que não deve virar a cabeça para olhá-la até terem saído do reino dos infernos.
  -À frente o esposo, atrás a mulher, vão por uma senda empinada, entre paisagens ermas, que leva ao mundo e à luz. Lhes rodeiam o silêncio, a penumbra e o terror. De repente, sem se lembrar da condição, com ânsia de lhe perguntar se se cansa, Orfeu vira os seus olhos para ela. .. Eurídice desaparece imediatamente. Quer ele abraçá-la... e só abraça como uma leve bruma. Eurídice não se queixa. Sabe que o amor moveu o seu esposo. E já longe envia-lhe o último adeus. Orfeu ficou como petrificado e, na sua impotência, decidiu iniciar novamente o caminho do Averno. Inutilmente tentou voltar ao Inferno. Durante sete dias e sete noites esteve nas margens do rio Aqueronte sem outra companhia que a sua dor, mas o inflexível velho Caronte não lhe permitiu subir à sua barca para atravessar aquelas pestilentes águas."
  -Muito certo parece o famoso comentário de que "a música amansa as feras", embora o relato de Ovídio nos também previna sobre a dificuldade de sair ileso dos lugares de castigo.

    UMA SIBILA NO AVERNO    

A Sibila de Cumas guardava os livros proféticos e os seus conhecimentos esotéricos eram tão vastos que preparou uma comida para lançar ao cão Cerbero, guarda dos infernos. E em quanto o monstro animal a houve ingerido caiu presa de um profundo sonho..

    Contam as lendas que um herói troiano chamado Eneias dispôs-se a descer aos lugares infernais. Com tal propósito se encaminhou para Cumas e solicitou a ajuda da sua sibila, pois a fama desta tinha ultrapassado todas as fronteiras.
  -Aquele era um tempo em que o oráculo estava regido por uma filha de Glauco -deus marinho que tinha o dom da profecia e da clarividência-, que tinha herdado toda a sabedoria ancestral do seu pai. Se diz dela que aconselhava, em ocasiões, o próprio deus Apolo e que, em troca, este prometeu à sibila que lhe seria concedido tudo o que lhe pedisse. Então a filha de Glauco, desejosa de alcançar a imortalidade, rogou ao deus Apolo que estendesse a sua vida tantos anos como grãos de areia pudesse apanhar com as suas mãos. E os seus desejos foram feitos realidade mas, no entanto, tinha-se esquecido de apontar que não decorresse o tempo para ela e, portanto, sobreveio-lhe, como a todos os mortais, a velhice e a decadência. Apolo, que se tinha dado conta do esquecimento da sibila, e porque além disso tinha se apaixonado por ela, ofereceu-lhe a juventude em troca de ceder às suas pretensões amorosas. Não aceitou a jovem e o tempo, implacável, foi murchando o seu outrora fresco e vivaz corpo, até convertê-lo numa espécie de minúsculo farrapo que cabia dentro duma garrafa. Da sua boca saía indefectivelmente a mesma frase repetida uma e outra vez: "quero morrer, quero morrer. .."
  -A "Sibila de Cumas" acompanhou Eneias até as mesmas portas do Averno e colocou uma comida ao cão Cerbero que lhe produziu sono.

    HÉRCULES E CERBERO    

Também o grande herói Hércules conseguiu entrar nos domínios de Nades, lutou com este e lhe feriu e, além disso, se enfrentou ao cão Cerbero sem arma alguma e lo venceu. Depois tirou ao cão dos infernos e lo devolveu ao mesmo lugar quando assim lhe foi ordenado..

    Além de Orfeu e da Sibila de Cumas, também o mítico herói grego Hércules /Héracles eludiu a vigilância do cão Cerbero. Este manteve com o monstruoso cão uma luta à morte e corpo a corpo -pois Hades /Plutão tinha-lhe dito que permitiria tirar o cão da sua guarida subterrânea se não utilizasse arma alguma nos confrontos entre ambos-; venceu o herói e levou o deforme cão até o lugar onde o esperava Euristeu. Este era um rei micênico que, por ordem da deusa Hera, se encarregava de impor os denominados "trabalhos" ao herói Hércules. Descer aos infernos e vencer a Cerbero, enfrentando, se era necessário, o próprio Hades fazia o número onze de um total de doze. E assim parece que sucedeu; o herói e Hades /Plutão encontraram-se na mesma entrada do Averno e, quase imediatamente, livraram uma cruenta batalha. Hércules cravou uma flecha no ombro do deus dos infernos e este abandonou a luta e os seus domínios subterrâneos, para dirigir-se ao idílico Olimpo à procura de um remédio eficaz para a sua ferida. Aqui lhe foi aplicado, no mesmo momento, um lenitivo feito com mistura de diferentes ervas e a ferida cicatrizou com assombrosa rapidez. Existem, não obstante, outras versões que narram os fatos de outro modo. Ao parecer, o herói Hércules feriu o deus Hades com uma enorme rocha que arrancou das desoladas colinas com que se tinha delimitado aquele tétrico lugar subterrâneo. Portanto, a ferida de Hades /Plutão não tinha sido causada por uma flecha, daqui o seu quase instantâneo restabelecimento. A verdade é que Hércules devolveu de novo o cão ao seu dono, tal como ordenara Euristeu.

    HABITANTES DAS SOMBRAS    

A Gorgona Medusa habitava, também, no reino das sombras e os seus cabelos eram serpentes. Tinha poder para petrificar com o seu olhar e, segundo contam as lendas, Perseu lhe cortou a cabeça..

    Hades /Plutão não estava sozinho no vasto mundo do mal, mas acompanhado por certas criaturas que, pelo menos, bem poderiam qualificar-se de sinistras. Entre elas, as mais conhecidas, à parte de servidores como o barqueiro Caronte ou o próprio cão Cerbero, eram as Górgonas, as Fúrias e as Parcas.
  -Foi o grande narrador Hesíodo quem deu conta da existência das Górgonas e das suas funções e atributos. Segundo explica nas suas obras, as Górgonas eram três irmãs que tinham figura de monstros marinhos. Os seus cabelos eram serpentes e a sua dentição era gigante; tinham o corpo com figura de mulher e umas enormes asas sobressaem da sua nuca e das suas costas. A mais célebre das três irmãs era Medusa, da qual se contam lendas que a relacionam com a mortalidade; as suas duas irmãs, Esteno e Euriale, em compensação, tinham a qualidade da imortalidade.
  -Medusa era uma espécie de monstro alado, com uma língua comprida e afiadas unhas, os seus cabelos eram serpentes e os seus enormes dentes pareciam facas afiadas. A iconografia de todos os tempos mostra-nos cenas em que aparece um homem tentando decapitar Medusa. Trata-se de representações da famosa lenda do herói Perseu.
  -Nela narram-se as peripécias deste herói que, durante as suas viagens pelo mundo inteiro, se encontrará com três monstros com asas de ouro, dentes de javali e cabeças cobertas de serpentes. São conhecidos pelo nome de Górgonas e um deles lhe dirige o seu olhar e ataca-o, mas o herói evita todo o mal -pois dizia-se que, sobretudo Medusa, tinha poder para petrificar com o seu olhar qualquer criatura- e, num ato de coragem, corta a cabeça de Medusa e foge com ela no lombo do mítico cavalo alado Pegaso. Assim, chegará mais tarde à ilha de Sérifos, que está governada pelo rei Polidectes, que pretenda casar com Dânae, mãe de Perseu, ao qual este se opunha expressamente. Na ausência do herói, Polidectes tentou violar Dânae. Informado Perseu, propôs-se dar-lhe uma lição e, ao mesmo tempo, devolver a merecida dignidade à sua mãe que, para evitar ser manchada pelo corrupto rei, se tinha refugiado num templo. Perseu pôs perante Polidectes a horrível cabeça de Medusa e este ficou imediatamente convertido numa pedra informe. Depois, o herói proclamou-se rei e ofereceu a cabeça de Medusa à deusa Atena, que a colocou no lugar mais destacado e visível do seu escudo.

    A MAIS AMÁVEL DAS CRIATURAS    

A famosa cabeça de Medusa é uma escultura de enormes dimensões que se encontrava no templo de Apolo, em Dídimos..

    Mais uma vez, a versão que Ovídio dá do mito das Górgonas e de Medusa difere sensivelmente da lenda tradicional: "No final do banquete, quando já todos os ânimos estavam embalados pelo otimismo dos vinhos, falou Perseu acerca dos costumes e usos do país. Cefeu rogou-lhe que lhes contasse como conseguiu aquela cabeça de Medusa cujos cabelos eram víboras. "No reino do Atlas -disse Perseu- existe uma cidade fortificada com altas muralhas cuja custódia foi confiada às filhas de Forcis, que tinham um único olho para ambas. Aproveitando o momento em que uma delas emprestava o olho à outra, eu penetrei na cidade e cheguei ao palácio das Górgonas, adornado com as figuras das feras e dos homens que a vista de Medusa tinha petrificado. Para evitar que me encantasse a mim eu olhei-a refletida no meu escudo. Aproveitei o seu sono e cortei-lhe a cabeça."
  -Perguntaram depois a Perseu porque é que Medusa tinha serpentes em vez de cabelos. "É uma história digna da vossa curiosidade. Eu vou contar. Medusa, num tempo, foi a mais amável das criaturas. Inspirou grandes paixões. Mas estava apaixonada sobretudo pelos seus cabelos. Possêidon e ela profanaram um templo de Atena, perante cujos olhos puseram o seu próprio escudo para que não visse como gozavam. Para castigar tamanho desacato, cada cabelo de seda e ouro de Medusa se transformou numa imunda víbora. .. víboras que, gravadas no seu escudo, ele utiliza agora para vingar-se dos seus inimigos"."

    AS FÚRIAS    

As Fúrias também moravam nos domínios de Hades e se lhes tinha encomendado a tarefa de castigar aos assassinos e tomar vingança..

    Entre as criaturas infernais, as Fúrias -também chamadas Erínias- sobressaem por amor para com as suas funções e missões. Encarregavam-se de castigar quem rejeitasse a instituição familiar e levavam a cabo a vingança que os mortais esqueciam. Também tinham encomendado a partilha eqüitativa dos castigos.
  -Eram deidades cuja origem teve lugar na terra que o sangue de Urano regara, depois de Crono ter cortado os seus órgãos reprodutores com uma foice fabricada com diamantes. As suas figuras amadas, com corpo de mulher de escura pele, e com as suas cabeças repletas de serpentes enroscadas, impunham temor ao contemplá-las. Sempre portavam nas suas mãos tochas, facas e chicotes, para melhor levar a cabo a sua função. Realmente cumpriam o dever de protetoras da disciplina e da ordem no mundo dos mortais. As diversas associações, assim como a célula mais simples da tramado social, como é a família, gozavam da proteção efetiva das Fúrias. Perseguiam, de maneira especial, os criminosos e assassinos e, neste sentido, aparecem como protagonistas de algumas histórias míticas que relatam fatos terríveis. Por exemplo, aceitam intervir quando Meleagro -um dos heróis que participou na expedição dos argonautas- mata, no calor de uma discussão, os seus tios. As Fúrias aconselharam Clitemnestra que matasse o marido para que este não notasse a infidelidade daquela. Clitemnestra era a esposa de Agamenon e, na ausência do seu marido por causa da guerra de Tróia, manteve relações íntimas com um primo seu. Ao regresso de Agamenon decidiu assassiná-lo para que nunca chegasse a saber que a sua mulher tinha cometido adultério. Mas Orestes, filho de ambos, viveria para vingar a morte do seu pai e, assim que se apresenta a ocasião, mata a mãe. As Fúrias o perseguirão por este criminal ato e se verá obrigado a fugir delas durante toda a sua vida.
  -As Fúrias tinham a sua morada no mundo subterrâneo e infernal que constituía os domínios de Hades. Só abandonam a morada do Averno quando os mortais enunciam um conjuro no seu nome. Geralmente não são chamadas em vão para não provocar a sua cólera. Em certas ocasiões empregam-se epítetos como por exemplo "as Bondosas" (Eumênides) ou "as Veneráveis" (Senas).

    AS PARCAS    

No mundo subterrâneo habitavam, também, as Parcas a quais todas as lendas identificavam com a morte. Quando o fio que se enroscava na sua roca se rompia, estavam advertindo que a morte estava próxima..

    Também são denominadas Moiras e, realmente, mais do que criaturas infernais, são as deusas do destino; originariamente encarregavam-se de dotar o recém-nascido com todos os atributos que desenvolverá na sua vida futura. Até lhe mostravam a forma em que morreria e o dia em que sucederia tão fatídico fato. Por tudo isto eram muito temidas e odiadas; eram consideradas como umas criaturas sinistras e, segundo Hesíodo, eram filhas da Noite. As Parcas eram três irmãs e cada uma delas tinha encomendada uma missão carregada de valor simbólico:
  -Cloto é a "fiandeira" e, quando se parte o fio com que tece, avisa-nos que chega o final e a morte. As decisões dos mortais dependem da forma em que Láquese modelasse o caráter e a própria idiossincrasia daqueles; pois esta Moira era a encarregada de designar os destinos dos humanos. Talvez por isso as Moiras foram identificadas em ocasiões com "a Fortuna" (Tique) ou com "a Necessidade" (Ananque). E, por último, estava Atropo, que tinha por missão vigiar o cumprimento de tudo o que se tinha profetizado aos mortais. Era tanto o seu zelo que era conhecida com o sobrenome de "a inflexível" pois nunca permitiu que o destino fosse eludido. A tradição marcou uma lenda das Parcas, ou Moiras, que arraigou-se com o tempo e, assim, eram denominadas com o nome de "Fiandeiras" e apareciam geralmente associadas à senilidade e à velhice. Alguns pensadores antigos, entre os quais se encontra Platão, rejeitavam as Parcas porque eram gênios malignos que manchavam e estreitavam quanto tocavam. Também se identificaram as Parcas com "o Sono" (Hipno) e com Tânato, que personificava a morte. Hesíodo, na sua obra "Teogonia" relata assim: "sombrios gênios malignos a quem nunca olha Hélios /Sol com os seus olhos brilhantes e cheios de luz, nem quando ascende ao céu nem quando desce das alturas celestiais. Um deles, tanto na terra como na incomensurável superfície do mar, esvoaça tranquilamente, cheio de doçura, para os mortais. O outro tem uma alma de ferro, um coração de bronze: inacessível a qualquer piedade, não solta aquele que pegou."

    HADES / PLUTÃO NA ARTE    

    As representações iconográficas de Hades identificam-se e confundem-se, na maioria dos casos, com as do próprio Zeus. Hades aparece representado como um homem robusto, numa taça que se conserva no Museu Britânico. Leva uma cornucópia e está rodeado por uma serpente e de uma águia -atributo de Zeus- o que faz com que a iconografia de ambos possa, às vezes, confundir-se. Em Mérida conserva-se uma figura de Hades realizada em mármore; embora seja mais habitual que apareça formando parte de um conjunto representativo de cenas do Averno e, muito especialmente, relacionadas com o rapto de Perséfone /Prosérpina. É sempre reconhecido pelos seus atributos mais comuns: o cão Cerbero, o seu cetro de comando e uma espécie de orcon. Às vezes aparece junto da ninfa infernal que a tradição popular identifica com Menta. Contam as lendas que Hades /Plutão mantinha relações com aquela e que, informada Prosérpina, calcou-a e converteu-a na planta da menta; daqui que, quanto mais se mova ou esmaga, mais cheira.


Fim